Completei 60 anos. Fiz nesta sexta-feira minha primeira visita à minha geriatra, que é a médica indicada para minha faixa etária. Meu objetivo é prevenir, diagnosticar e me preparar para as doenças comuns da minha idade. Segundo li, demência, hipertensão arterial, diabetes e osteoporose são as mais comuns, além dos problemas de mobilidade, perda de memória e outros aspectos. Estes momentos servem para conversar com um profissional para melhorar nossas tomadas de decisão sobre qualidade de vida e manter minha saúde cerebral, já que sou escritor.
Até agora, sei que tenho pré-diabetes. Tenho peso pouco acima do normal para minha idade, ainda que meu cardiologista me peça para perder mais. Ele não considera a perda de dez quilos em um ano o suficiente para sair desta zona de risco. Só Deus sabe o quanto a redução já me custou: menos bolas de sorvete por porção, menos cerveja na mesa do bar, substituição de deliciosas fatias de pão com bastante queijo por morangos e frutas no café da manhã. Além, claro, de caminhadas que me tiram o pouco tempo que me resta para leitura e escrita. Mas esta, como todos sabem, é uma atividade sedentária, algo que já me é vedado.
Eu e meus médicos
Chego à geriatra, no alto de um prédio novo da Av. Osvaldo Aranha. Relembro com a médica que ali havia um cinema admirado por minha geração, o Baltimore, e que a especulação imobiliária transformou em seu novo prédio de negócios com vista para o parque. As construtoras adoram construir prédios com vista. A vista é um bem ativo, é um capital, mas os empreendedores, a cada novo prédio, terminam com ela. Eu moro em um apartamento antigo, no bairro Petrópolis, que tinha vista, mas de repente, como num assalto à mão armada, prédios foram construídos ao seu redor e literalmente me “roubaram”. Se a vista fosse roubada dos ricos para dar aos pobres, tudo bem. Mas é o contrário. Sinto por isso.
Gostei da minha geriatra. Ela é de uma geração mais “antiga” de médicos porque fazia anotações em fichas de minha jornada corporal ao invés de anotar em um notebook. Ela mesma dizia que “ajuda a olhar o paciente.” Você o olha, interrompe o olhar para escrever, volta a olhar”, deu a entender. Uma médica que olha o paciente? Gostei de novo. Eu relatava minha jornada: uma cirurgia de apendicite ali, um ombro fraturado aqui, mas na verdade meu relato parecia não a impressionar. “Como assim, não toma nenhum remédio?” “Sim”, enfatizei. “Nadinha?”, perguntou mais uma vez. “Nada”, confirmei. É surpreendente. Cheguei aos 60 anos sem nenhuma medicação. Nunca tive problemas muito sérios, ainda que os fantasmas de um pai com Alzheimer aos 80 anos e uma mãe infartada aos 77 anos possam me perseguir. Isto significa que consegui sobreviver à era farmacopornográfica, indissociável do capitalismo turbinado, psicotrópico e punk, como define Paul B. Preciado em Texto Junkie (N-1 Edições, 2018). Com relação aos problemas da herança da genética familiar, ela disse para não me preocupar: “Cada caso é um caso, não há um determinismo genético, e você pode ser jovem com um corpo de velho e vice-versa”, deu a entender.
Eu olhava pela janela de seu consultório e via a cidade onde vivo. O tempo da paisagem da cidade é como o tempo do corpo de nossa existência. Assim como a paisagem da cidade é descrita em poemas ou representada em pinturas e fotografias, e delas aprendemos sobre sua natureza, com o corpo também, através de suas radiografias e exames, vemos como sua natureza se impôs como objeto de conhecimento. Falo dos exames que já fiz: o de sangue que aponta minha pré-diabetes, os de ouvido e o cardíaco, que teimam em falar que estão “normais para uma pessoa da minha idade”. Ficamos divagando sobre os sentidos da expressão “normal para uma pessoa da minha idade”, que me soa enigmática, ainda que tenha, de fato, muito pouco a reclamar de meu corpo, mas sinto que, por ter 60 anos, eu deveria estar sofrendo mais do que realmente estou. Eu deveria estar otimista.
Porto Alegre precisa de uma consulta
Porto Alegre também é assim, não? Agora, na semana em que a cidade completou 253 anos, as pautas jornalísticas celebram a saúde e vitalidade da cidade. Esse otimismo com Porto Alegre está por todo o lado. Você vê a propaganda da Prefeitura na televisão, vê representada diante de seus olhos uma cidade feliz, sem problemas, radiante, consagrada na imagem dos prédios novos que sugerem modernidade. Estão realmente falando de Porto Alegre? – pergunto. Nunca tivemos tanta segurança, sugere a propaganda. Você vê durante toda a reportagem do Jornal do Almoço mostrando a cidade como “cadinho de culturas” onde toda a sorte de imigrantes vive em perfeita harmonia e feliz. Eu penso nas medidas nefastas do neoliberalismo de Donald Trump e se um dia não chegaram por aqui por meio dos nossos governantes neoliberais. Eu penso no imigrante senegalês com o olhar perdido no centro da cidade que passa a semana vendendo roupas de procedência duvidosa no chão da Avenida Borges de Medeiros à espera de um comprador.
Eu olho pela janela do consultório de minha geriatra e penso que a cidade também merecia uma consulta médica pela passagem de mais um aniversário, uma espécie de check-up. Assim como com o corpo, aspiramos a uma cidade sem contradições. Mas isso não existe. Entendo que a cidade também tem suas doenças, mas seu discurso de aniversariante só nos mostra que esse é mais um momento de negação, como eu que nego a gravidade de ser pré-diabético. A metáfora do corpo aplicada à cidade é clássica nas humanidades: Fabiana Brito e Paola Jacques falam em corpografia urbana. “Corpo e cidade se relacionam, mesmo que involuntariamente, por meio de toda e qualquer experiência urbana. A cidade é lida pelo corpo como conjunto de condições interativas e o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo em sua corporalidade, o que passamos a chamar de “corpografia urbana“. As autoras partem da crítica à especularização da cidade para propor a necessidade de reconstituir o caráter político do espaço público por meio da experiência corporal; eu parto da crítica à paisagem da cidade para propor a necessidade de combater o ideal neoliberal urbano; enquanto elas propõem a ideia de corpografia como resistência, eu a proponho como sintoma. Se o corpo pode adoecer, a cidade também pode. E os sintomas estão na sua forma. É preciso encontrar os agenciamentos – a expressão é das autoras a partir da noção de Deleuze & Guattari – que produzem a doença na cidade, as formas de percepção espaço-temporais complexas que sugerem a sua degradação, assim como procuramos no corpo os sintomas das doenças no exato instante em que ela aparenta florescer. Não é essa a definição de velhice? Não envelhecemos a partir do próprio nascimento?
Falamos que Porto Alegre é uma cidade “jovem”. Diz-se que Porto Alegre é mais jovem porque foi fundada em 1772, enquanto outras cidades, como Vila Velha, foram fundadas em 1535, Olinda e Recife em 1537 e Salvador em 1549. Eu tenho minhas dúvidas, pois, como o corpo, uma cidade pode parecer jovem, mas ter problemas de velho. Foi isso que me sugeriu minha geriatra com sua divagação. Não é isso que acontece com nossas ruas, com seus engarrafamentos contínuos, na Protásio Alves, na Assis Brasil, e em tantas outras ruas e avenidas? Muito já se comparou elas com nossas veias e artérias. Também nos cansamos de ficar nos engarrafamentos, seja nos ônibus ou carros, exatamente como as veias entupidas que podem levar à trombose venosa, que também causa cansaço. No fim do dia, essa sensação de peso que tem a cidade não é da mesma natureza do peso de nossas pernas? Corpo e cidade não são a mesma coisa, é verdade, mas tanto o corpo como a cidade evocam experiências: vamos ao médico para cuidar do corpo, assim como consultamos arquitetos, urbanistas, planejadores urbanos e demais humanistas para cuidar da cidade.
A transformação da paisagem é um sintoma
Mas, alerta Jacques Rancière em O Tempo da paisagem (Martins Fontes, 2024), “o tempo da paisagem é aquele em que a harmonia dos jardins e cuidados ou a desarmonia da natureza selvagem contribuem para tumultuar os critérios do belo e o próprio sentido da palavra ‘arte’”. Esse tumulto implica outro, que afeta o sentido de uma noção fundamental tanto para o senso comum quanto para a reflexão filosófica, a noção de natureza. Ora, não se pode tratar da natureza sem tratar da sociedade que obedece a suas leis, e o tempo da paisagem é também aquele em que a organização feliz da sociedade toma emprestadas da natureza suas metáforas: a harmonia dos campos, das florestas ou dos cursos d’água.”
Olho a cidade da janela de minha geriatra. O que vejo: a paisagem é bela? Não. É marcada por novos arranha-céus. Quando você vê a pintura Vista geral de Buenos Aires da Praça dos Touros (1820), de Emeric Essex Vidal, pintor britânico que viveu entre 1791 e 1861, você vê uma paisagem equilibrada onde, do alto de um prédio, que não deve ter mais de dois andares, você vê o campo, e no fundo, outros prédios. A imagem consta em The Metropolis in Latin America (1830-1930), de Idurre Alonso e Maristela Casciato (Getty Institute, 2021). Você olha a imagem do centro de Buenos Aires, compara com as atuais e vê que a preservação da paisagem lá ao longo do tempo foi maior do que a que fizemos aqui, na preservação do bairro Bom Fim: é só comparar as imagens da antiga várzea com a que vejo do alto do consultório.
O tumulto da noção de natureza da cidade é claro: ao longo do tempo, transformamos nossa paisagem para pior. Não podemos tratar a cidade se não tratarmos a sociedade que produz suas transformações para pior, e você já sabe o nome que dou a ela: sociedade neoliberal. É ela que desarmoniza as formas da cidade, transforma os prédios antigos que davam os contornos de uma cidade harmônica, como o antigo cinema Baltimore, em uma cidade desarmônica de empreendimentos comerciais. Na semana de aniversário, não deveríamos comemorar a saúde da cidade que, na verdade, está doente. Não há harmonia na desigualdade social que passeia pelas ruas da cidade; o mundo africano que “passa por aqui” geralmente também é o dos vendedores pobres que buscam em nossas ruas abrigo. A ideologia do aniversário da cidade é uma ilusão que repetimos ano a ano para esquecer nossas mazelas.
Primeiro sintoma da velhice da cidade
Não é notável que, na semana em que a cidade comemora 253 anos, apareça um sintoma clássico do envelhecimento, a perda de memória? Reportagem do Jornal Matinal afirma que ao menos dois caminhões de lixo recolheram documentos do prédio da SMOV que continham preciosas informações históricas e urbanísticas da cidade, numa palavra, memória. Supostamente condenados pela enchente de 2024, os documentos continham a história dos imóveis desde os anos 70 da capital. Foram 40% considerados irrecuperáveis, diz a Prefeitura. Pesquisadores da UFRGS afirmam a necessidade de apontar quem declarou o acervo irrecuperável, já que “o simples contato com a água da enchente não inviabiliza a recuperação de documentos e que antes de descartes deve haver um laudo técnico.” Segundo o conselheiro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul, José Daniel Simões, “chamou a atenção uma movimentação de dois caminhões de lixo numa edificação que estava fechada havia anos e que estava tomada de acervos”. O conselheiro foi constrangido e registrou B.O. Informado da remoção de arquivos, o Ministério Público instaurou inquérito para verificar se o descarte seguiu as normas do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), órgão colegiado vinculado ao Arquivo Nacional, “que determina que haja uma avaliação de uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos, com profissionais da área”. Não se tem notícia de nada parecido.
Este é para mim o primeiro sintoma da velhice da cidade: a facilidade com que se esquece, ou se finge esquecer, o que realmente dá valor à cidade. Tão importante quanto os arquivos da SMOV, são prédios históricos cheios de memória que são guardiãs de nossas lembranças na cidade: do prédio “Mata Borrão” que existia na esquina da Borges de Medeiros com Salgado Filho às casas de escritores célebres, passando pelo Cine Baltimore, todas são referências do passado que cedem aos imperativos de exploração do solo na lógica de mercado. É preciso construir o novo e, para isso, é preciso… destruir o “velho”. Não é a mesma lógica de consumo que opõe velhice e juventude, onde os primeiros são, nos termos de Baumann, “descartáveis”?
O desejo do capital é apagar vestígios inconvenientes
Luis Gustavo Ruwer afirma em artigo à Matinal que a perda de 240 mil pastas “jogou no lixo milhares de documentos relacionados a processos urbanísticos de imóveis”. O autor defendeu dissertação de mestrado sobre o conflito territorial entre uma população kaingang e “uma empresa que buscava erguer um grande condomínio no local”. Ele afirma que acessou o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) desse empreendimento, cuja “leitura que se mostrou tão fundamental para a pesquisa quanto o trabalho de campo junto à comunidade. Felizmente, esse EVU estava entre os 5% de arquivos digitalizados antes das enchentes por uma empresa terceirizada. Caso contrário, poderia hoje estar se misturando ao lixo, junto com outras milhares de pastas e documentos descartados sem cerimônia.” A conclusão é uma só: “a cena remete às páginas de A Menina que Roubava Livros, onde livros são incinerados na Alemanha Nazista para apagar ideias inconvenientes. Aqui, não houve fogo, mas o resultado é semelhante: o apagamento de registros que poderiam frear os interesses dos poderosos. A destruição desse acervo, em meio à revisão do Plano Diretor, não é somente um apagamento histórico, mas um golpe contra a memória urbanística da cidade. Sem documentos sobre o passado, apagam-se debates, eliminam-se entraves e aceleram-se obras que, livres de regras, avançam sobre as ruínas da cidade.” O que isto faz? Destrói a maior invenção dos porto-alegrenses, a identidade da cidade de Porto Alegre.
É que na semana de aniversário da cidade precisamos refletir não sobre o que faz a cidade “bela”, o que “une” seus cidadãos. É preciso mais do que a música bonita sobre a cidade mostrada no Jornal do Almoço, no estilo We Are the World, a famosa canção de 1985: é preciso uma reflexão séria sobre a história da cidade sob o advento do capitalismo neoliberal. Ela nos diz que o desenvolvimento da cidade é produto do aumento de sua população, da congregação e conturbação de arraiais e vilas em uma cidade cada vez maior e mais complexa, onde se desenvolveram agricultura, indústria, comércio, artes, com uma cultura comum e uma identidade. Minha tese é que, na passagem do capitalismo mercantil ao neoliberal, o capital precisa da destruição da cultura local para se afirmar, precisa impor a cultura planetária urbanizada consumista na capital dos pampas, como precisa em todo lugar. Assim, o lugar de grandes escritores, filósofos e cidadãos notáveis que viveram na capital, lugar do homo urbanus porto-alegrensis, dá lugar simplesmente ao homo dolor, ou homem consumidor.
É só repassar a história da cidade. Porto Alegre moldou e criou uma região conectada e polarizada cuja riqueza está concentrada na capital. A região metropolitana de Porto Alegre envolve não apenas cidades relacionadas e ligadas entre si, mas capitalistas que definem o comércio local e regional. Porto Alegre é o conector de uma máquina de organização socioeconômica que move o progresso econômico e das demais áreas sociais de forma conjunta. Para o bem e para o mal, até poucas décadas atrás, desenvolveu-se como uma cidade com notável cultura e identidade, mas hoje esses atores econômicos também são os responsáveis por inúmeros lobbies que desestruturam pressupostos básicos do Plano Diretor, desorganizam a paisagem da cidade com a multiplicação de seus investimentos imobiliários, produzem a expulsão de cidadãos para as periferias e desempregam trabalhadores históricos como cobradores de ônibus. O que vale agora não é a cultura, mas estabelecer o ambiente ideal para o consumo de massa. Elas começam na forma como reorientamos a organização da cidade.
Neoliberalismo adoece a cidade
A identidade da cidade tem uma história. Porto Alegre experienciou os regimes e formas políticas nacionais, passando da escravidão à liberdade e ao exercício da democracia. A libertação dos escravos pela Câmara Municipal, a repercussão local da proclamação da república e a instalação do Estado Novo também foram acontecimentos nacionais de repercussão local, eventos em Porto Alegre. As passeatas em defesa da democracia durante o regime militar, a luta pelo impeachment de Fernando Collor de Mello e a defesa das eleições diretas ocorreram também em Porto Alegre, pois é a cidade em que os porto-alegrenses lutam por um mundo melhor. Esses fatos produziram uma identidade entre seus cidadãos. Mas, da mesma forma que ela se construiu, um mundo pior se avizinha para sua desagregação, quando sucessivos governos neoliberais assumem a Prefeitura e, na sua articulação com grandes interesses econômicos, promovem uma varredura na limitação do desenvolvimento capitalista que a cidade possui. Entendo que esse projeto é claro: derrubar todos os obstáculos à expansão neoliberal na cidade. O que afeta diretamente a paisagem e a “saúde” urbana. Vejo isso em minha rua do bairro Petrópolis: a calma e tranquilidade do passado cedeu espaço às tranqueiras de carros promovidas pelo excesso de novos empreendimentos.
Ainda que a cidade de Porto Alegre esteja em permanente mudança desde sua origem, é possível ver que os resquícios de seu passado no meio da cidade urbanizada e moderna estão em rápida destruição, exatamente o contrário do que ocorre nas cidades europeias, onde convivem a arquitetura antiga com a da era pós-industrial. Mais: é possível notar que as semelhanças entre Porto Alegre e grandes cidades industrializadas do mundo, com seus arranha-céus, são cada vez maiores, da mesma forma que a distância com as cidades com características de cidades antigas, como Atenas até Veneza, é ampliada. Porto Alegre não está mais próxima de cidades que se transformaram de centros comerciais, como Manchester e Detroit, em capitais industriais ou estou enganado? Não estamos perdendo elementos de cidades verdes e inteligentes, como Tóquio, de cidades criativas como Milão, para o inferno do igual de que fala Byung Chul Han, com suas torres que almejam ser como as de Camboriú?
O capital está transformando as funções da cidade
Por isso, mais uma vez, é preciso estudar a dinâmica das cidades. Paul Knox, em Atlas das Cidades (2016), aponta quatro funções fundamentais das cidades ao longo dos tempos. Este é o primeiro momento de uma análise para mostrar que Porto Alegre ilustra diferentes ênfases e combinações de tais funções, bem como diferentes formas de manutenção da infraestrutura e dos contextos sociais. Em meu próximo livro “Porto Alegre: história, cultura e contradições sob o neoliberalismo” (Clube dos Autores, 2025, no prelo), mostro como, assim como outras cidades, Porto Alegre é essencial para o desenvolvimento da região sul do país por constituir uma das primeiras quatro grandes cidades que formaram o Rio Grande do Sul. Mesmo com o início modesto, com a instalação dos 60 casais açorianos no sítio da região, ela terminou por funcionar como motor de organização econômica e centro de expansão da região para o restante do país. Aqui, ao longo desse processo, sua evolução social, cultural e política foi notável, pois, como outras cidades do planeta, adaptou-se a diferentes funções em um sistema global integrado, preservando uma identidade que a diferencia das demais, mas que, ao mesmo tempo, sofre degradação com os efeitos do avanço das políticas neoliberais de Estado. Na linha de interpretação de Knox, entendo que Porto Alegre assumiu quatro funções essenciais comuns às demais cidades do planeta:
1. Capacidade decisória: Porto Alegre assumiu o lugar de encontro de estruturas decisórias do Estado e do município logo nos inícios de sua formação. A Praça da Matriz, sede do poder político do Estado, também foi sede do poder político local, pois ali localizou-se, durante o século XIX, a sede da Câmara Municipal. Isso transformou a cidade em núcleo do poder político e econômico, transformando-a, no século XX, no eixo central para onde convergem as cidades da região metropolitana. Entretanto, hoje, a capacidade decisória não está a serviço dos interesses da cidadania, como no passado, mas do grande capital.
2. Capacidade transformativa: Porto Alegre realizou a passagem da sociedade rural tradicional representada em seu núcleo original açoriano na fase chamada de “A Era do Trigo” por Souza & Miller, em sua obra “Porto Alegre e sua evolução urbana” (Ed. UFRGS, 1996), para o desenvolvimento de um estilo de vida urbano determinado pelo aumento do tamanho e variedade de sua população. Nesse sentido, tanto a imigração do século XIX de italianos e alemães, como a presença de refugiados haitianos e senegaleses, entre outros no seguinte, reforçam a ideia de que a capital é um espaço aberto e capaz de adotar em seu interior os mais diferentes costumes. Isso não foi imune, entretanto, às sequelas do capitalismo, como a produção de pobreza e a exclusão social.
3. Função mobilizadora: Porto Alegre forneceu o ambiente para a realização de todas as atividades da cidade. Sua estrutura física, criada ao longo do tempo, permitiu que a atividade econômica se instalasse, a mão de obra fosse fixada nas suas proximidades e tivesse acesso a matérias-primas e rotas de distribuição de seus produtos para o país e interior. Além disso, foram em suas praças que se desenvolveu, em primeiro lugar, a função política, pela mobilização popular e ocupação desses espaços pelos movimentos sociais, como na Esquina Democrática. A democracia, entretanto, vem sofrendo ataques diretos pela desmobilização dos movimentos sociais e pela ascensão de setores econômicos que vêm dando a direção da expansão e crescimento da cidade. A mobilização antes de muitos é hoje de poucos.
4. Função generativa: Em Porto Alegre, a concentração das pessoas favoreceu a ampliação das interações sociais, e com isso, a criação de mercado, organização social, inovação e troca de conhecimento. Isso foi possível por três espaços fundamentais que se consolidaram como “espaços generativos”: a Praça do Mercado, para onde acolhia a população para o comércio; a Praça da Matriz, para onde a população se dirigia para atuação política ou religiosa; e a Praça da Alfândega, espaço mix de serviços para a capital. Agora, com a ascensão da digitalização, do rompimento dos laços na vida cotidiana e da transformação de espaços históricos em novos shoppings-centers, a lógica das interações sociais vem sendo substituída pela lógica de consumo.
Na semana de aniversário de Porto Alegre, para muitos, a cidade é uma cidade jovem. Para mim, é uma cidade jovem num corpo de velho, com os problemas que a expansão capitalista provoca. Hora de procurar um médico para retornar ao caminho para construir um resto de vida saudável e melhor.
Todos os textos de Jorge Barcellos estão AQUI.
Foto da Capa: Theatro São Pedro, Porto Alegre, 1860