Antigamente, cronistas começavam seus textos com “o assunto da semana foi…”, prática que teve de ser saudavelmente abandonada nesta era em que a lógica voraz e repetitiva das redes sociais alavanca não um, mas vários assuntos, e não ao longo de uma semana, mas no intervalo de uma tarde. Dito isso, um dos assuntos da semana foram as repercussões das imagens da invasão aos três poderes empreendida na tentativa de golpe do dia 8 de janeiro – culminando na instalação da CPMI que, aparentemente, a oposição queria tanto até se dar conta de que seria, para eles, uma péssima ideia. Não vou me estender sobre todos os mil desdobramentos reais ou fictícios desse novo capítulo da insanidade política nacional, mas em um elemento colateral da história que os bozistas de modo geral tentam emplacar, a de que um presidente que já havia sido eleito teria promovido a destruição do palácio que ocuparia para dar um golpe.
A lógica mandaria que nos perguntássemos qual seria o objetivo de um presidente já eleito em dar um golpe depois de apenas uma semana no cargo, mas um erro que muitos cometem é tentar entender teorias da conspiração partindo da lógica como uma ferramenta consensual de exploração intelectual da realidade, e não, como deveriam, da lógica como ferramenta para comprovação da opinião já feita, uso mais frequente dado a ela pela extrema direita nacional. Na narrativa (que palavra que desceu baixo depois que passou a frequentar a boca de bolsonaristas) apresentada pelos apoiadores do ex-presidente joalheiro amador e usuário confesso de morfina, o autogolpe “simulado” do governo Lula serviria justamente para desmobilizar a oposição acampada e diminuir a resistência logo nos primeiros dias de um governo que, para eles, não foi eleito, mas tomou o poder por fraude nas urnas, etc. Claro que é uma lógica cheia de furos de roteiro (agora, por exemplo, a convicção do ex-presidente sobre a possível fraude virou um LITERAL “foi mal, tava doidão), mas fico me perguntando o quanto o hábito arraigado de todos nós de assistirmos infinitamente nos últimos anos a filmes com roteiros ruins em que precisamos desculpar os furos de roteiro “por que isso não importa tanto quanto a experiência” não tem um pouco a ver com essa falta mínima de sendo crítico sobre a realidade. mas aí sou eu divagando
Um elemento
Essa treta da invasão, da tentativa de golpe e da força quase constipada que os bozistas estão fazendo para transformá-las em “armação da esquerda” já se desdobrou em tantos fatos correlatos e subtramas que nem a pau que eu vou acompanhar tudo – aliás, acho que talvez aí resida um desafio REAL do jornalismo noticioso no mundo contemporâneo. Numa realidade que cada vez mais fomenta o déficit coletivo de atenção, estamos perdendo a mais simples capacidade de concentração para acompanhar acontecimentos que se desdobram em fios novelescos enquanto a lógica de redes sociais, que se espalhou não apenas pela internet, mas pela imprensa, faz o jornalismo não conseguir dar conta mais das histórias particularmente complexas. Você tá sem tempo e queria um resumo bem-apanhado, mas o que a mídia te mostra é uma minissérie japonesa em 175 episódios e mais uns quatro ou cinco spin-offs de 30 capítulos cada, e qualquer um deles é “importante” para a compreensão.
Mas para este texto acho que a ideia mais apropriada é isolar um elemento à luz de um dos poucos campos em que eu acho que a minha experiência prática de fato tem algo a dizer. Um dos tópicos que vem sendo usado numa campanha delirante da extrema-direita nacional para “comprovar” que a invasão foi “armada” pela esquerda favorável ao presidente recém-eleito é a perseguição difamatória que vem sendo efetivada por essa turma ao repórter fotográfico da Agência Reuters Adriano Machado, que, veja só, é visto como um “indício da armação” porque ele estava lá cobrindo o fato desde muito cedo, estava com equipamento de segurança e é flagrado nas imagens “cumprimentando” alguns dos manifestantes e, aparentemente, concordando em apagar algumas das imagens de sua câmera (não sou leitor de lábios e o vídeo não tem som, então não sei se é isso mesmo que acontece nas imagens. Insuflados por um dos filhos do ex-presidente chapadão (acho que o deputado Bananinha, mas não sei bem diferencias eles uns dos outros), militantes da extrema-direita vêm “lançando perguntas” que seriam “inconvenientes” sobre a presença do fotógrafo “na cena do crime” – o jornalista Pedro Burgos fez um compilado de algumas dessas alegações em seu Twitter. “O que ele estava fazendo lá bem na hora?” “O que esse jornalista estava fazendo lá se antes estava cobrindo a posse do Lula?” “Por que ele estava de máscara e roupa de proteção?”
Olha, tendo trabalhado em redação por mais de 30 anos e tendo contato frequente com alguns dos melhores fotógrafos do jornalismo gaúcho, eu posso dizer o seguinte de todas essas “perguntas válidas” apresentadas pelos luminares da oposição. Tentando colocar a coisa da forma mais simples e civilizada possível, ou é um argumento falacioso politicamente interessado ou é uma burrice sem tamanho. Você escolhe por qual motivo vai querer replicá-las.
Falácias
Jornalismo se faz com repórteres, e há ocasiões em que a única forma de repórteres fazem seu trabalho é in loco. Assim, achar “estranho” que o mesmo fotógrafo esteja presente na posse de Lula e na invasão da porra do centro do poder no Brasil é ser simplesmente burro. Isso ou querer vender um discurso, aí você está só sendo oportunista, ok. Repórteres vão para a rua porque é lá que podem testemunhar algo e relatar, aliás, é essa a origem do termo, o cara que conta.
Achar que você só lida com as pautas com as quais você tem alguma vinculação ideológica ainda que mínima é um sintoma para mim bastante revelador do tipo de relação que a extrema direita nacional mantém com a informação. Qualquer jornalista com algum tempo de redação já falou com um monte de gente de diversas tendências políticas e já cobriu mais de uma vez eventos ligados a correntes opostas. Diacho, eu mesmo já falei profissionalmente com todos os governadores do Estado, alguns secretários de segurança e todos os secretários de cultura do Estado desde a época do governo Britto e nem por isso votei em todos eles ou tenho identificação com todos.
E com relação a essa suspeita algo estranha de o fotógrafo estar de máscara e colete, bom, bem-vindos ao mundo que vocês mesmos criaram. Uma das grandes tragédias do atual momento do jornalismo é que as empresas donas dos veículos e das plataformas, acuadas pela situação econômica, pela perda de audiência no meio desse aluvião de estímulos e pela sua própria covardia diante das pressões recorrentes dos dois extremos da política, vêm cada vez mais conformando seu negócio a um modelo que é praticamente insustentável: a ideia de jerico de que é viável fazer jornalismo sem repórteres. Alguns dirão que a culpa é toda da internet, mas eu pude ver por conta própria antes mesmo da consolidação da atual lógica de redes e de algoritmos o quanto empresas de comunicação já vinham investindo, ou melhor, deixando de investir, num ciclo interminável de corte de custos.
Menos fotógrafos, menos repórteres, um único repórter encarregado de cobrir um mesmo evento para “jornal, rádio e internet” (um modelo que algumas empresas até hoje propagandeiam como eficiente – o que pode ser, em termos de balancete, mas nunca de jornalismo). Até a pá de cal que foram as dinâmicas da internet aplicadas aos cenários – outra hora talvez eu fale mais sobre isso. A questão é que quanto mais se avolumam as pressões e intimidações exercidas contra a imprensa pela massa de manobra política – por exemplo, aquela que o ex-presidente doidão mobilizou durante quatro anos, seja em motociatas de tiozões caidaços querendo brincar de Sons of Anarchy, seja no cercadinho do Alvorada com suas senhoras do clube de crochê de Santana — menos as empresas estão dispostas a investir em reportagem porque reportagem custa caro e há um limite para o quanto você pode cortar do orçamento. E isso vai acabar inevitavelmente estourando na pessoa na ponta do fio: repórteres e a turma da fotografia. Porque já chegamos à era de ouro das redações que fazem “escuta” (copia e cola de outro veículo, basicamente) e que “recuperam por telefone” uma história, mas não tem como você fazer isso com uma foto. No mínimo alguém tem de estar lá com uma câmera, e estar lá com uma câmera é perigoso, e se tornou ainda mais depois daquele delírio coletivo que foram as manifestações psicodélicas de 2013..
O mundo pós-2013
Ontem mesmo, desembargadores da 9ª Câmara de Direito Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiram, por unanimidade, negar, de novo, indenização ao fotógrafo Sergio Silva, que perdeu o olho esquerdo ao ser atingido por um disparo de bala de borracha pela PM paulista durante uma das manifestações de 2013. Repórteres quando estão em campo são representantes “teóricos” de uma força poderosa, a tal “imprensa livre” que o discurso político burguês gosta de exaltar. Muitos editores e proprietários de jornais adoram ter o discurso da liberdade de imprensa na ponta da língua em momentos em que repórteres são alvo de intimidação, mas o fato é que quem conhece de fato a realidade desse tipo de episódio é justamente o elo frágil lá na extremidade da estrutura, que não precisa estar numa guerra em zona conflagrada para ser o alvo da vez na veneta de um personagem ou de uma multidão/corporação.
Muito já falamos sobre como o ex-presidente usuário de morfina transformou, aí sim de modo inédito, o ataque à imprensa em programa de governo, mas é preciso também lembrar que, durante as manifestações de junho de 2013, muitos setores à esquerda, no entusiasmo daquilo que viram como o início de um “grande momento”, também deixaram extravasar impulsos agressivos contra jornalistas fazendo seu trabalho, não apenas a PM. Reclamem nos comentários me chamando de mentiroso e eu faço o dossiê numa próxima coluna, se quiserem. Por ora, lembro apenas que nos últimos 10 anos tornaram-se comuns entre profissionais da imprensa cuidados que antes não eram tão utilizados justamente porque eles agora se revelavam necessários. Usar máscaras de gás quando se sabe que há possibilidade de gás lacrimogênio voar. Usar celular conectado na nuvem para evitar que a sua apreensão pela PM, por exemplo, sirva para que o seu conteúdo “desapareça” misteriosamente. Redações chegavam a dar oficina disso na época, logo, achar que um repórter fotógrafo ia se lançar na cobertura de uma invasão ao poder político nacional sem se equipar minimamente é falacioso.
E quanto ao fato de ele interagir amigavelmente com os invasores: meu amigo, a maioria dos fotógrafos que já conheci na vida é composta de uma gente muito mais maluca e audaciosa do que qualquer um desses templários da boa família digital, mas há uma diferença de escala monumental entre coragem e impulso suicida (aliás, até o Durkheim já escreveu sobre isso, você não leu?). Um fotógrafo vai pro meio da muvuca no sentido contrário ao que todo mundo está correndo, mas isso não o impede de pesar algumas decisões bem complicadas com relação à sua própria segurança quando ele se vê confrontado por uma turba.
Viva os repórteres
Foram vários os relatos de fotógrafos que circularam pelo tumulto sem se identificar simplesmente confundidos com a horda de gente que fazia live como prova contra si mesmo naquele dia. E é isso aí mesmo. Achar que alguém tem de ser espancado por uma horda fazendo seu trabalho em vez de fazer de conta que está tudo bem é, novamente, manifestar um profundo desconhecimento do que seja a cobertura jornalística in loco – um desconhecimento cada vez mais frequente, dado que as empresas estão meio que reduzindo o número dos malucos em seus quadros. Um colega meu certa vez me contou como escapou de uma provável agressão policial ao entregar o cartão de memória errado de sua câmera, trocando com um passe ágil de mão pelo que ele de fato retirou do equipamento diante dos canas.
Encerro com a minha solidariedade plena a um fotógrafo que eu sequer conheço, mas com a memória dos muitos com quem trabalhei durante tantos anos, esses grandes malucos sem os quais não haveria notícia estaríamos entregues a reacts e a cópias de cópias de cópias de notícias que lá na origem talvez tenham sido escritas pelo ChatGPT.
NEM TE CONTO Nº 11
Como hoje o tema eram fotógrafos e imagens insuspeitas, uma das mais impactantes e influentes (falamos logo por quê) histórias de Júlio Cortázar.
AS BABAS DO DIABO, de Júlio Cortázar (incluído em As armas secretas, da José Olympio, 2009, e em Todos os Contos, da Companhia das Letras, 2021).
“Entre as muitas maneiras de se combater o nada, uma das melhores é tirar fotografias, atividade que deveria ser ensinada desde muito cedo às crianças, pois exige disciplina, educação estética, bom olho e dedos seguros”, declara o narrador do conto, Roberto, um tradutor franco-chileno radicado em Paris que, num domingo ensolarado, pega sua câmera de fotógrafo amador e vai sacar alguns instantâneos da manhã cheia de luz e vento da cidade. Ao passar por uma pracinha pequena e pouco frequentada no Quai de Bourbon, ele registra a imagem de um casal aparentemente discutindo, sem saber que pode estar flagrando algo muito mais complexo e dramático. Um dos grandes textos curtos de Cortázar, publicado em meados dos anos 1960, teve um impacto duradouro sobre a cultura também porque sua leitura inspirou o clássico Blow Up, de Michelangelo Antonioni – que, a bem dizer, pega emprestado o mote do livro, mas o explode e o expande para muito além de sua brevidade algo ambígua.
Foto da Capa: Marcelo Camargo / Agência Brasil