Esse texto é um desafio de conversa entre o conto “O Ovo e a galinha” de Clarice Lispector com o livro “Escute as feras”, de Nastassja Martin, e foi concebido inicialmente como uma fala para um evento psicanalítico sobre esse conto de Clarice, que eu transformei então em texto para trazer a vocês, leitores.
Ovo é um palíndromo. O fim pode ser o começo e o começo pode virar fim. Assim também a nossa vida. Assim também um processo analítico. Mas eu nem quero começar a falar de psicanálise, ainda. Porque Clarice é tão maior. Porque a vida é tão maior. E ainda assim a gente faz psicanálise pra viver maior. Viver melhor. Já que eu comecei dizendo que nenhum silêncio é solitário, eu gostaria de dizer que me amparei em um outra obra para me acompanhar nessa jornada entre um ovo e uma galinha: porque Clarice é profunda demais para nadar sem remo. E a gente pode até se afogar, mas é preciso remar.
Já faz algum tempo que eu li o livro “Escute as feras” da antropóloga russa Nastassja Martin, onde ela narra a história verídica de seu encontro com um urso que a atacou violentamente e do qual ela sai quase destruída, mas viva para contar. Esse livro mexeu muito comigo, me fez botar ovo para fora quando me colocou a pensar sobre nosso corpo e sobre o que o encontro com uma fera e com a nossa própria fera pode acionar. Pensei que o urso e o ovo poderiam conversar. A autora russa tenta integrar a fera e os vestígios dela dentro de si assim como eu vi Clarice tentando sentir o ovo, pensar o ovo e a galinha e sua relação com a vida, mesmo numa experiência doméstica aparentemente tão inofensiva.
“Não sinto dores de fato. Só sinto medo, medo de tudo aquilo que não voltou a se fechar em mim, de tudo aquilo que potencialmente se insinuou em mim. Há outros seres à espreita na minha memória. Então talvez haja alguns debaixo da minha pele, nos meus ossos. Essa ideia me aterroriza, porque não quero ser um território invadido. Quero fechar minhas fronteiras, expulsar os intrusos, resistir à invasão. Mas talvez eu já esteja sitiada. É sempre a mesma coisa. Diante de pensamentos assim, eu afundo: sei que para fechar minhas fronteiras, seria preciso antes poder reconstruí-las”(p. 47). Esse trecho do escute as feras para mim poderia estar também no conto da Clarice. Ovo ou corpo, estamos falando das margens, da nossa casca, tão fina, tão enorme. A pele é o maior órgão do nosso corpo. É nosso anteparo, nosso contato com o mundo e com o outro. Tão frágil e tão forte ao mesmo tempo.
“A unicidade que nos fascina aparece enfim como aquilo que ela é, um engodo” (p.55)
Unicidade é um engodo e Clarice também sabia disso. O ovo sabe disso e a galinha também. A ilusão de fusão que precisamos ter no início da vida precisa ser desfeita antes que seja tarde. E sempre é um pouco tarde nos nossos consultórios. Sempre estamos em processo de ana-lise, de quebra.
Percebi, lendo o conto, que eu tinha uma forte tendência ou pretensão, eu diria, de decifrá-lo, de entender afinal de contas o que era esse ovo, quem era essa galinha, interpretar o conto. Nada menos Clariceano do que isso. Nada menos psicanalítico do que isso! Quando parei de tentar traduzir e passei a ler e sentir o que acionava em mim para poder estar aqui hoje, tudo começou a fluir com mais naturalidade e reflexão. Pensei que o ovo é um projeto de ser, é uma pré-galinha. E para que o processo de maturação ocorra e o ovo se rompa, ele precisa ser CHOCADO pela galinha. CHOCADO. Precisa de choque, mas o choque não é via impacto. Impacto é o que a gente faz quando quebra o ovo quando ele ainda não é pinto e comemos o ovo. O choque se dá pela galinha que aquece, envolve aquele ovo, até que ele amadureça. A casca também é ovo. Talvez o ovo seja mais ovo em função de sua casca do que pelo seu conteúdo. Ok, estou sendo Clarice demais agora. Clarice diz “ter uma casca é dar-se” e eu me perguntei, dar-se a quem, quem é que nos pega, quem recebe o ovo? Volto ao livro das feras quando penso que ele me convidava a todo o momento a pensar na apropriação do próprio corpo e na sensação que a narradora nos convoca de ter o corpo invadido e, ao mesmo tempo e justamente em função dessa invasão, à sua dona apresentado. Esse é seu corpo, adona-te dele. Ainda que um urso tenha vindo e dilacerado tuas carnes, tua mandíbula, o que restou íntegro é preciso recompor. Já faltavam pedaços muito antes do ataque, ela nos mostra. O ovo é uma falta, Clarice nos conta. É falta por ser incompleto, é falta por pedir por mais.
Ser galinha não é simples. Ser gente também não. Muito mais cômodo pensar que se dizer EU é tarefa óbvia, como o conto nos conta. Muito mais cômodo pensar que eu = si mesmo. Ledo engano. Aqui também nos interessa pensar na apropriação desse EU. Tarefa longa, entender que o si mesmo passa por saber-se casca, gema e clara. Corpo, mente, inconsciente e também importante aqui, o contexto onde esse eu existe. Que comunidade, que camada social. Um ovo na casa da família que mora em bairro abastado ou ovo de periferia. Ovo é sempre ovo, mas onde vive a galinha que o choca? É choque impacto ou choque abrigo?
Para concluir as provocações, trago um trecho de um texto que vem me acompanhando já há algum tempo e que fala sobre a experiência e de que forma fomos nos tornando sujeitos dos acontecimentos, da informação, da opinião, mas pouco sujeitos da experiência. Deixar que uma experiência nos atravesse, nos transforme, como Clarice tão bem sabia com seus textos que partiam de acontecimentos tão banais e corriqueiros.
Diz Jorge Larrosa: “A experiência e o saber que dela deriva são o que nos permite apropriar-nos de nossa própria vida. Ter uma vida própria, pessoa, como diz Rilke em Cadernos de Malta, é algo cada vez mais raro, quase tão raro como uma morte própria. Se chamarmos existência a esta vida própria, contingente e finita, a essa vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência.”
Por isso temos Clarice e seu ovo, para nos mostrar que experiências são acontecimentos de dentro, que a gente quebra é de dentro para fora, mas o mundo mesmo é dentro.
Quebrar o ovo de si é partir-se para dentro e, assim, tentar parar de se quebrar por aí.