O fato de mesmo depois de uma gestão desastrosa da pandemia, incompetência e descaso que deixaram até agora quase 700 mil mortos, de mesmo depois do atraso na compra de vacinas, mesmo depois de o presidente em exercício ter imitado um paciente de COVID morrendo sem ar, fazendo troça da morte, enfim, o fato de mesmo assim Bolsonaro ter tido mais de 40% dos votos é assustador. É abissal. É pavoroso. Mas é brutalmente real.
Este eleitor está dizendo para todos nós que a nossa vida é sacrificável, que tudo bem nós morrermos desde que seus privilégios permaneçam intactos e seu ressentimento com os governos humanitários, minimamente vingado. O maior problema é que este eleitor do Bolsonaro caminha nas ruas ao nosso lado, pega o mesmo elevador que nós, compartilha a mesa de almoço nos domingos. Prescreve medicações para nós e cuida de nossos filhos. Busca nossas crianças com o transporte escolar, assume cargos altos nas empresas em que trabalhamos. Conserta a tubulação do banheiro da nossa casa.
E tudo isso sorrindo, satisfeito, engasgado no seu próprio ódio por tudo e por todos que representam uma mínima possibilidade de mudança em um cenário forjado com marretadas de injustiça em corpos que experimentam a vida pela exaustão e pela fome.
Temos que lidar com um fato óbvio, mas que até então parecia encoberto pela nossa esperança desajeitada no verniz civilizatório: a vida, a nossa vida, talvez não seja um bem assim tão valioso para aqueles que supomos que nos amam. Somos descartáveis, dano colateral em uma suposta guerra do bem contra o mal.
Não estamos mais jogando o mesmo jogo de alguns anos atrás, não são as mesmas regras.
Se tem algo que ficou claro neste primeiro turno foi o quanto os filósofos da linguagem e os sociólogos marxistas sempre estiveram certos: a realidade não tem embasamento material, ela é a escolha de uma narrativa suficientemente coerente. A realidade não é verdadeira ou falsa de acordo com algum referente externo, ela só precisa ser verossímil, fazer sentido para si mesma. Ou não esperávamos que as urnas fossem dar um golpe bem dado no que supúnhamos ser um delírio religioso coletivo dos bolsonaristas? Ou não achávamos que as pesquisas eram anteparos civilizatórios ao que imaginávamos serem bravatas de um bando alucinado? Pois bem, o mais triste de tudo é que, neste domingo, vimos escancarada à nossa frente uma obviedade que há tanto preferíamos não ver: que 43,2% da população brasileira vive não só a partir de posicionamentos morais e éticos diferentes dos nossos, mas que habitam uma outra realidade.
Não tínhamos em mente que a extrema-direita já tinha construído outro mundo. Apostamos na realidade e perdemos. Achávamos que ela seria o antídoto, mas era o próprio veneno.
Independente do que acontecer no segundo turno, eles conseguiram: tornaram o Brasil um país autofágico e ingovernável. Bolsonaro deu um golpe silencioso e através do eleitor, esgarçando ao máximo as regras democráticas. Tomou conta do Senado e da Câmara. Quase não faz diferença o segundo turno. O objetivo parecia ter sido só esse: capilarizar ao máximo o ódio e o ressentimento, ocupando assim todas as frestas democráticas possíveis, esvaziando, deste modo, a possibilidade de se produzir qualquer mudança em nível legislativo no país.
Talvez as pesquisas eleitorais não tenham conseguido “captar” a realidade destas eleições justamente porque os seus métodos de levantamento de dados não levavam em conta os bolsões evangélicos, o voto daquele que frente à urna se vê diante de Deus, e não em um local seguro e privado. Se Deus vê e sabe de tudo, então ele também saberá se este eleitor votou “no bem ou no mal”. Os institutos de pesquisas estavam preparados para fazer um leitura da realidade que compartilhávamos até 2018, mas não têm condições, agora percebemos, para dar conta desse delírio coletivo que se tornou a narrativa dominante em nosso país.
E essa foi a realidade que venceu no domingo, essa que elegeu para cargos no Senado e na Câmara os precipitados mais execráveis do bolsonarismo. Temos que conviver com o fato de que o povo elegeu assassinos, perversos e cínicos para lhe representar – porque, afinal, efetivamente eles representam. O Brasil profundo não está no fundo do casebre de madeira da favela – está ao nosso lado, na casa do nosso vizinho de porta. O Brasil não tem mais profundidade: tudo agora se dá a céu aberto, na superfície à flor da pele de um país que nunca puniu ninguém pelo massacre de Carandiru, por exemplo, ou que nunca abriu os arquivos da ditadura militar.
Estamos, assim, frente à constatação de que muitos dos nossos conhecidos e familiares não votam em Bolsonaro apesar de ele ter imitado um paciente moribundo ou xingado uma mulher: mas votam por causa disso. Temos muita dificuldade – ainda bem, aliás – de supormos a maldade pura e simples. Tristemente, não acreditar que esta maldade exista é mais pensamento mágico do que esperança.
E é quase insuportável aceitarmos isso, mas infelizmente teremos que encontrar uma saída para esse horror também no plano singular, na relação um a um. Antes de tudo, acredito que agora não estamos mais em condições de relativizar os termos. Precisamos pelo menos nomear as coisas de forma categórica: estamos convivendo com fascistas. Ponto. O que fazemos a partir daí são outros quinhentos, mas repensar os nossos laços se torna imperativo para podermos cuidar de nós mesmos e daqueles que amamos.
Agora não é mais hora de ciranda e festividade. Não vão adiantar artistas compondo música e celebridades “fazendo o L”. Isso só nos dá a sensação de não estarmos sozinhos, mas provavelmente não muda nada no plano concreto. Até porque, como vimos, mais fez pelos resultados eleitorais um espantalho enraivecido fantasiado de padre do que todos os gritos de “olê, olê, olá”. Ao nosso “Lula, Lula” eles contrapuseram a frase: “Olha como você fala com um padre!”. Em um Brasil “terrivelmente evangélico”, essa frase é nitroglicerina pura.
Nossa realidade virou isso: um pastiche de si mesmo, uma caricatura mal desenhada que só exagera os aspectos horríveis do rosto da sociedade. É assustador saber que a gente vai ter que defender não só posições políticas e morais, mas a própria definição de realidade compartilhada. Não vai ser poesia que vai nos ajudar nisso, infelizmente. Não adianta empilhar treze livros vermelhos ou vestir vermelho no dia da votação. Cabe a nós, de esquerda, aprendermos a falar de forma mais literal agora. É um momento para organizarmos ativamente o nosso pessimismo, como sugeria Walter Benjamin.
Afinal, a fome, a miséria e a violência não sabem fazer rimas.