No glossário de expressões que diariamente põem em evidência o modo de ser da burguesia brasileira, feito de um cruzamento de estupidez e covardia, aquela que fala da catástrofe iminente – ao dizer que “as coisas não podem continuar assim” – dá particularmente que pensar. A desesperada fixação nas ideias da segurança e da posse, que dominaram as décadas passadas, impedem o homem comum de se aperceber das extraordinárias formas de estabilidade, absolutamente novas, que estão na base da atual situação. Como a relativa estabilidade dos anos antes da pandemia lhe foi favorável, ele acha que tem de considerar instável toda a situação que lhe retire posses. Mas nunca as situações estáveis tiveram de ser também situações agradáveis, e já antes da pandemia havia camadas sociais para as quais a situação estável significava a miséria estável. A decadência em nada é menos estável, em nada mais singular que o progresso ascensional. Somente um cálculo que admita encontrar no declínio a única ratio da situação atual passaria do entorpecedor espanto por aquilo que diariamente se repete à constatação de que as manifestações da decadência são o que há de mais estável e a única coisa que salva, algo de extraordinário, a raiar o portentoso e insondável.
Os brasileiros vivem como habitantes de uma cidade cercada onde começam a escassear os alimentos e a pólvora, e para a qual dificilmente se esperará salvação, pelo menos em termos do que é humanamente previsível. Um caso em que a rendição, talvez incondicional, é uma hipótese a considerar seriamente. Mas o poder mudo e invisível com o qual o país se sente confrontado não negocia. Não nos resta, portanto, mais do que, na expectativa permanente do ataque final, pôr os olhos no milagre extraordinário, a única coisa que ainda nos pode salvar. Essa situação, que exige de nós a mais tensa e conformada atenção, poderia, porém, produzir realmente o milagre, uma vez que estamos em contato secreto com as forças sitiantes. Pelo contrário, a expectativa de que as coisas não possam continuar assim terá um dia de convencer-se de que o sofrimento dos indivíduos e das comunidades, principalmente as pobres, só tem um limite para além do qual nada poderá continuar: o aniquilamento.
Um estranho paradoxo: as pessoas, quando agem, pensam apenas no interesse pessoal mais mesquinho, mas ao mesmo tempo são, mais do que nunca, determinadas no seu comportamento pelo instinto das massas. E nunca como hoje os instintos das massas se enganaram tanto nem foram tão estranhos à vida. Nas situações em que o obscuro instinto dos animais – como tantas histórias contam – é capaz de encontrar saída para o perigo iminente mas ainda invisível, esta sociedade, na qual cada um tem apenas em vista a sua própria e mísera abastança, sucumbe, com uma insensibilidade animal, mas sem aquele saber inconsciente dos animais, como uma massa cega, ao primeiro perigo com que se confronta, e a diversidade dos objetivos individuais torna-se irrelevante perante a identidade das forças determinantes. Por mais de uma vez foi demonstrado que a sua dependência de uma vida a que se habituou, mas que se perdeu há muito tempo, está tão empedernida que põe a perder a aplicação, tão tipicamente humana, do intelecto sob a forma da previdência, mesmo em situações drasticamente perigosas. E assim a imagem da estupidez se consuma em tais situações : insegurança, mesmo perversão dos instintos vitais e impotência, total abdicação do intelecto. É essa a disposição de espírito da generalidade da elite brasileira.
Todas as relações humanas mais próximas são afetadas por uma limpidez penetrante, quase insuportável, à qual dificilmente conseguem resistir. De fato, como o dinheiro constitui, por um lado, o centro absorvente de todos os interesses da existência, e, por outro lado, é precisamente a barreira perante a qual quase todas as relações humanas fracassam, cada vez desaparecem mais, no plano natural como no moral, a confiança espontânea, a tranquilidade e a saúde.
Não é por acaso que se fala da miséria “nua e crua”. O que há de mais funesto na exibição dessa miséria – que, sob o signo da necessidade, se tornou habitual, embora mostre apenas a milésima parte do que está escondido – não é a compaixão, nem a consciência, igualmente terrível, da imunidade própria, sentida por quem vê, mas a vergonha disso. Tornou-se impossível viver numa grande cidade brasileira, onde a fome força os mais miseráveis a viver das notas com que os transeuntes procuram tapar uma nudez que os fere.
“A pobreza não envergonha ninguém.” E, no entanto, eles envergonham os pobres. Fazem isso, e ao mesmo tempo consolam-nos com a frase bonitinha. Que vem daqueles que em tempos teriam alguma aceitação, mas para quem há muito chegou a hora do declínio. É exatamente o que se passa com aquela outra frase brutal “Quem não trabalha não come”. Nos tempos em que o trabalho era o sustento de cada um também havia pobreza, que não envergonhava, se vinha das más colheitas ou de qualquer outra fatalidade. O que envergonha é essa penúria em que milhões já nascem e centenas de milhares são apanhados, caindo na pobreza. O esterco e a miséria crescem à sua volta como muros levantados por mãos invisíveis. E do mesmo modo que cada um, sozinho, é capaz de suportar muita coisa, mas sente uma compreensível vergonha quando a mulher o vê suportar tudo isso e o aceita, assim também cada indivíduo isolado pode aceitar muita coisa, desde que esteja sozinho, e tudo, desde que o esconda.
Mas nunca ninguém poderá fazer as pazes com a pobreza quando esta se abate como sombra gigantesca sobre o seu povo e a sua casa. Nessa altura, o que tem a fazer é manter os sentidos despertos para toda a humilhação que sobre eles recaia, e controlá-los até que o seu sofrimento deixe de escorregar pelo plano inclinado da amargura, para enveredar pelo trilho ascendente da revolta. Mas toda esperança será vã enquanto todos esses destinos terríveis e sombrios forem apresentados pela imprensa diariamente, de hora a hora, sempre com causas e consequências fictícias, não ajudando ninguém a reconhecer as forças obscuras a que a sua vida passou a estar submetida.
Para um gringo que acompanhe por alto o modo como se desenrola a vida no Brasil , ou que tenha viajado pelo país durante algum tempo, talvez gravando os vídeos a postar em seu canal de viagens, os brasileiros não lhe parecerão menos estranhos que os de qualquer raça exótica. Aquilo que mais contribuiu para o grotesco isolamento do Brasil aos olhos dos outros países, o que o levou a ter a ideia de que os brasileiros são uma espécie de botocudos (como alguém, muito acertadamente, disse), é aquela violência, totalmente incompreensível para quem está de fora, totalmente inconsciente para quem dela é presa, com que as condições de vida, a miséria e a estupidez submetem, neste nosso cenário, as pessoas às forças sociais, de uma maneira só comparável à vida de um homem primitivo, totalmente determinada pelas leis do clã.
Vai-se perdendo a liberdade do diálogo. Antigamente era natural, entre pessoas que dialogavam, ir ao encontro do ponto de vista do outro ; hoje, pergunta-se logo pelo preço dos sapatos ou do iPhone. Qualquer conversa cai fatalmente no tema das condições de vida e do dinheiro. Mas não se trata das preocupações e dos sofrimentos de cada um, coisa em que talvez se pudessem ajudar uns aos outros – é a observação do todo que ocupa a conversa. É como se estivéssemos presos num teatro e fôssemos obrigados a seguir a peça que se desenrola no palco, quer quiséssemos, quer não, e tivéssemos de fazer dela, quer quiséssemos, quer não, o objeto do nosso pensamento e do nosso discurso.
Quem não fugir à percepção da decadência passará sem demora à justificação particular das razões pelas quais permanece e age neste caos e dele participa. A cada ponto de vista sobre o fracasso geral corresponde uma exceção para a sua própria esfera de ação, a sua morada e as suas circunstâncias particulares. Impõe-se quase por toda a parte a vontade cega de salvar a todo o custo o prestígio da existência pessoal, em vez de libertá-la da cegueira geral, desprezando soberanamente a sua impotência e o seu enredamento. É por isso que o ar anda tão cheio de teorias da vida e visões do mundo, e é por isso que neste país elas parecem tão excessivas, porque, vistas as coisas, servem sempre para sancionar qualquer situação privada insignificante. E é por isso também que esse ar está tão cheio de ilusões e miragens de um futuro cultural que, apesar de tudo, irrompe e floresce do dia para a noite, porque cada um segue apenas as ilusões de ótica do seu ponto de vista isolado.
As coisas manufaturadas perderam uma certa e nobre indiferença perante as esferas da riqueza e da pobreza. Cada uma delas marca quem as possui, e ele mais não pode fazer do que mostrar-se na sua condição, ou de pobre diabo consumidor ou de traficante. Porque, enquanto até o luxo autêntico tem uma natureza permeável à inteligência e à sociabilidade, capazes de fazê-lo esquecer, as mercadorias de luxo que hoje se exibem ostentam uma brutalidade tão despudorada que toda a emanação espiritual delas se ausenta.
Dos mais antigos usos dos povos parece chegar até nós a advertência que nos diz que devemos abster-nos do gesto da cobiça ao acolhermos aquilo que tão generosamente recebemos da natureza. Porque nada podemos oferecer de nosso à terra-mãe. Por isso, é preciso mostrar respeito ao receber, devolvendo-lhe de novo uma parte de tudo o que ela nos vai oferecendo, antes mesmo de nos apossarmos do que é nosso. É esse respeito que encontramos no antigo costume da libação (aqui no Brasil traduzida no popular gesto de “derramar um pouquinho pro Santo”). Talvez seja também essa antiquíssima experiência moral que sobrevive, transformada, na proibição de recolher as espigas esquecidas e apanhar as uvas caídas, na medida em que estas podem servir à terra ou aos antepassados que enviam as suas bênçãos. O costume ateniense proibia que se apanhassem as migalhas à refeição, porque estas pertencem aos heróis. Se a sociedade, presa da necessidade e da cobiça, degenera a ponto de já só ser capaz de receber os dons da natureza saqueando-a, se colhe os frutos verdes para poder vendê-los a bom preço no mercado e se tem de esvaziar todas as travessas só para se saciar, a sua terra empobrecerá e o campo terá más colheitas.
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Prometi na linha de apoio que este seria o melhor texto que vocês já leram nesta coluna. E não estava mentindo. Porque este texto não é meu. É, com cortes e adaptações para casar o artigo à realidade brasileira contemporânea, Panorama Imperial, uma das reflexões e aforismos reunidos por Walter Benjamin em seu livro Rua de mão única, publicado em 1928, portanto há quase cem anos. Benjamin, por óbvio, não se referiu nenhuma vez ao Brasil em seu texto, nem à pandemia. Tampouco a iPhones ou coisas do tipo, essas foram intervenções muito pontuais que fiz para manter até o fim uma ilusão ao estilo truque de mágico para quem não o conhecia (imagino que alguns de vocês conheçam e tenham ficado ora confusos ora indignados, então aqui esclareço minhas intenções). Tirando essas maquiagens e dois ou três trechos maiores que cortei porque eram meio inadaptáveis, esse é o texto de Benjamin quase na íntegra
Nele, o pensador falava sobre a Alemanha em desagregação após a aventura inconsequente da I Guerra, a brutalização de um país acossado pela extrema pobreza e pela inflação galopante, e principalmente da sua burguesia algo desconectada dos processos sociais que levaram àquela situação. Como nós sabemos muito bem para que lado aquela Alemanha se inclinou meros cinco anos depois da publicação do livro, que tipo de político ela elegeu e que tipo de propostas abraçou como política de Estado e de governo (levando, tristemente, à morte precoce do próprio Benjamin), fiquei algo desconcertado ao reler o texto esses dias e perceber o quanto do que está descrito nele pode ainda ecoar em um Brasil que parece estar neste momento em um hiato perigoso, uma trégua precária perante uma tentativa comprovada de implantação de um movimento golpista reacionário tentado pelo governo anterior para manter-se no poder. Uma trégua que, lamento concluir, o atual governo não está sabendo consolidar como devia, ou como aqueles que o elegeram esperavam que faria quando depositaram nele sua confiança.
O trecho em questão foi retirado da edição mais recente da obra, unindo Rua de Mão Única com um outro texto curto de Benjamin, Infância Berlinense. A publicação é da pela Editora Autêntica, com tradução do fundamental tradutor e ensaísta português João Barrento.
Foto da Capa: Agência Brasil