Essa foi a pergunta que me provocou a escrever sobre Aline Sousa, a mulher negra que entregou a faixa presidencial no último dia 1° de janeiro. A catadora de materiais recicláveis foi uma das oito representantes da sociedade civil para subir a rampa do Planalto Central na posse do Presidente da República.
Quem é a Aline Sousa
Nascida em Brasília, Aline Sousa é presidente da Central das Cooperativas de Trabalho de Catadores de Materiais Recicláveis do Distrito Federal (CENTCOOP-DF), tem 33 anos, é casada, mãe de sete filhos, e é a terceira geração de catadores em sua família. Ela morou por 10 anos em uma ocupação irregular no Pistão Sul, com outras 60 famílias. O local ficava embaixo de uma das maiores redes de tensão elétrica do DF. Aline conquistou a casa própria por meio do programa do Governo. Ela está no terceiro mandato como presidente da CENTCOOP-DF.
Em entrevista para a Alma Preta, agência de jornalismo especializada na temática racial Aline declarou: “A gente vive em um país ainda muito racista, que ainda mata por questões da nossa cor. Eu acho que a simbologia disso (referindo-se ao ato de entrega da faixa presidencial) é de reforçar que a gente também é ser humano e que a também tem vida e direitos”.
Mas ter vida e direitos em um país racista é bastante complexo.
Por que o fato de Aline ter viajado para outros continentes incomoda
Aline (@aline.sousa10) atua como catadora desde os 14 anos na mesma cooperativa onde trabalharam sua mãe e avó materna. Aline está Diretora-Presidente da Central de Cooperativas citada, e também atua na Secretaria Nacional da Mulher e Juventude da Unicatadores. Em 2013, ingressou no Movimento Nacional de Catadoras como articuladora nacional com representação da categoria no Distrito Federal.
Essa atuação estratégica em prol da Política Nacional de Resíduos levou Aline a participar de uma missão oficial em Johanesburgo, na África do Sul, onde teve a oportunidade de vivenciar a experiência dos recicladores de lá. Recentemente, ela foi eleita Delegada Regional da Red Lacre (Aliança Global de Catadores), o que a levou a participar de outra agenda internacional, dessa vez, na Argentina. Na condição de Diretora-Presidente da CENTCOOP-DF, ela foi convidada para em parceira com outras organizações participar de visita técnica na Itália, onde pode conhecer o sistema lixo zero.
Depois de visibilizada na cerimônia de posse do Presidente da República, Aline passou a ser atacada e ter suas viagens questionadas em suas redes sociais.
“Arruma um emprego pra eu catar lixo em Roma também, poxa nunca te pedi nada”, “Catadores de lixo em 3 gerações? Aliás, pobre na Europa?”, “Se eu começar a juntar as latinhas que vejo na rua, em quanto tempo eu vou para Roma que nem a senhora?” são algumas das “mensagens” deixadas em uma das redes sociais de Aline Sousa.
A grande pergunta para mim é: por que o acesso de pessoas negras a lugares de poder ainda causa espanto e incômodo para uma parcela da sociedade?
A mancha indelével da cor
Em novembro de 2022, iniciei o curso “Ler o Brasil”, da plataforma Casa Sueli Carneiro. Um resumo bastante estreito sobre a proposta do curso pode ser definido como estudar nossos clássicos, ler e ouvir autoras e autores negros, para melhorar nossa leitura de Brasil e organizar a nossa ação coletiva.
Trago esse recorte porque aprendi muito já no começo do curso. Me gabo de ser uma boa “perguntadeira”, acredito fortemente que perguntar é uma excelente forma de desenvolvimento pessoal, menos pelas respostas e mais pela desconstrução das certezas. Também por isso, confio na elaboração de novas e melhores respostas para as nossas questões, e encontrei muitas no primeiro módulo do curso intitulado “A Mancha Indelével da Cor: uma aproximação as questões raciais no Brasil”, ministrado por Edson Cardoso, que é professor, jornalista, ensaísta e fundador do MNU (Movimento Negro Unificado).
Hierarquização da cidadania pela cor da pele
A República do Brasil não foi construída para pessoas pretas. “Existe uma hierarquização da cidadania e ela se faz pela cor da pele”, afirma o professor Edson Cardoso.
José Bonifácio, importante estadista brasileiro, reconhecido abolicionista dizia: “Uma coisa é o escravo outra coisa é a cor do escravo”. Seu empenho pela libertação dos escravizados tinha um viés muito importante, o retorno de todos os negros brasileiros para a África.
Em 1824, a Corte promovia ações em prol da colonização alemã no Rio Grande do Sul sob a justificativa de “superior vantagem de empregar gente branca, livre e industriosa, tanto nas artes como na agricultura”. A mesma decisão que facilitava a vinda de imigrantes da Europa proibia a convivência com pessoas negras na região, as quais, escravizadas ou libertas, deveriam ser transferidas pelo Império.
Pouco antes, na Constituição de 1823, pessoas negras eram reconhecidas como cidadãos, porém a mesma lei fundamental vedava o direito ao voto pela cor da pele. Ao passo que se reconhece e rechaça a escravidão de pessoas negras, também lhes é negado o direito à cidadania. Um para frente, outro pra trás.
Tanto no Império como na República, a cidadania foi negada a pessoas negras pela falta de acesso à terra e na falta de oportunidades de emprego.
Quando chegamos em 1985-90, encontramos o Presidente da época, repercutindo no dia 13 de maio a seguinte frase: “custa crer que houve escravidão nesse país”. Ressaltando que o povo brasileiro vivia em harmonia e condições de igualdade. Esse pensamento contribuiu para construir uma falsa ideia de igualdade e para boicotar qualquer tentativa de debate sobre o racismo.
A raiz do problema é a cor da pele
Mancha indelével, expressão usada pelo abolicionista José Bonifácio, significa a máxima representação do que é a estigmatização da pele negra.
Erving Goffman, sociólogo e antropólogo, em seu livro de mesmo nome, define o que é Estigma: “Por definição, acreditamos que alguém com estigma, não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos várias discriminações, através das quais e muitas vezes, sem pensar, reduzimos suas chances de vida”.
A vida das pessoas negras no Brasil é sitiada, impedida, invisibilizada, e a raiz do problema é a cor da pele. A invenção da mancha indelével desumaniza e como consequência discrimina e encerra possibilidades.
Marcados, encontramos no empreendedorismo uma forma de resistência.
Mulheres negras sempre estiveram à frente da construção desse país
Angela Davis disse que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Você compreende por que essa frase é tão significativa? Porque sempre nos colocaram na base.
Ainda que cause estranhamento para alguma parcela da sociedade, é melhor ela já ir se acostumando a nos ver ocupando legitimamente espaços de poder, em honra das nossas ancestrais que deixaram seu sangue na construção desse país.
Alessandra Francisco Silveira é advogada, pós-graduanda em Direitos Humanos, responsabilidade social e cidadania global. É mentora de carreira e consultora em diversidade, equidade e inclusão na @_we_are_connected.