Viajar faz bem à saúde. Ler é terapêutico. Há limitações para viagens. A leitura nos leva a voar, além fronteiras de espaço ou tempo.
Confinado no quarto, em plena pandemia. Um livro em especial marcou minha recuperação. Estava à minha espera, ao lado da cama, sobre a mesa de cabeceira. Salvou-me da covídica letargia.
Não se considere, no entanto, que se trata de obra de “autoajuda”. Ainda que pueril, não desprezo o trocadilho que toma o guidom desse parágrafo e impulsiona a correia. Poderia classificá-lo, então, de literatura de “cicloajuda”? Que se releve essa digressão, é cascalho solto na pista. Não pare de ler, estamos em franca descida texto abaixo.
O título do livro: Viajando de Bicicleta: Mundo Afora (Astrolábio Edições, 2021). A autora: Vera Marques; é mestre em Psicologia Clínica, especialista em Psicologia da Saúde e Psicologia Hospitalar. Depois de se aposentar aos 58 anos, ciente de que a terra não é plana, resolveu dar voltas no globo.
Conheço-a há anos, é casada com o colega José Marques, médico reumatologista. Residem em Araçatuba, São Paulo. O casal tem três filhos: Victor, Gabriel e Lucas. Apesar da distância e dos raros encontros, tornaram-se nossos amigos, por muitas afinidades afetivas.
Na introdução da sua obra, Vera Marques cita Santo Agostinho: “O mundo é um livro, e os que não viajam acabam lendo só uma página”. Na carona da autora, viajei por lugares onde já passei, mas que não havia “aproveitado”. Outros jamais teria a oportunidade de ir. Mesmo quando próximos, ela mostrou caminhos que me surpreenderam.
O quilométrico volume – são 662 páginas que passeiam por cinco continentes – vale cada pedalada. Da descrição de paisagens a ricas vivências, alegrias, dificuldades e, não poucas, epifanias. Serve de guia para quem quiser se aventurar, dá dicas importantes e ensina macetes de como evitar ou resolver inevitáveis perrengues.
O que o torna especial, contudo, é o entusiasmo de Vera. Trabalhara desde os onze ou doze anos. Fazia mudas para plantio de café, fez faxinas. Quando completou quatorze, o primeiro emprego de carteira assinada. Uma agência onde se vendiam passagens intermunicipais e para outros estados. Desde sempre, para cada destino, em desejo e fantasia, “viajava”. Aos 15 anos, matriculou-se num curso de Técnica em Enfermagem, aprendeu a cuidar de pessoas.
Ainda jovem, dezessete anos, assim ela conta, deixou Echaporã: “uma minúscula cidade no interior munida de uma pequena malinha”. Seguiu para São Paulo. Trabalhou, estudou, casou, formou-se em psicologia. Continuou sempre trabalhando e estudando. Até que, aposentada, filhos criados, pegou a bicicleta e rumos que a imaginação há muito traçara.
Viajou só em muitos desses percursos. Em outros, na companhia do marido, de um filho, de outros ciclistas. Na força dos relatos, Vera Marques nos torna parceiros de estrada.
Com ela, percorremos rotas românticas, históricas, caminhos de peregrinos e exploradores. Lugares bucólicos. Moldura de hortênsias, aroma de lavandas. Chuva, sol, nuvens, brilho de estrelas. O canto de pássaros, o silêncio absoluto da paz. Gente que acolhe, que se sente visitada, valorizada em suas existências e geografias. Sorrisos à forasteira desarmada, sobre duas rodas inofensivas.
Antes de conhecer a Vera, eu já admirava o José Marques. Ele é referência em outra área que me interessa, a da Ética Médica e da Bioética. Tive o privilégio de aprender muito com ele, no intervalo de congressos, em agradáveis conversas. Ele também escreve. Além de ensaios, contos e narrativas pitorescas. Deu-me o privilégio de ler uma novela curta, sobre um período obscuro; inédita, relevante, merece ser publicada.
Mas que o amigo Zé me desculpe, não é o foco principal desse texto. Concedo alguma consideração – personagem coadjuvante – apenas porque é a ele que a autora dedica o livro. À Vera, todas as honras! Não há como não recordar Mario Quintana. Através das palavras do poeta, eu me declaro: “Senhora, eu vos amo tanto / Que até por vosso marido / Me dá um certo quebranto…”
Na infância, eu não largava a bicicleta. Deslizei sobre paralelepípedos perfeitos nas ruas de Taquara, sacudi em vicinais de chão batido. Subi a serra até Gramado; adiante de Três Coroas, pelo leito da linha ferroviária, desativada pelo míope deslumbramento dos anos 60.
A partir desse livro, de compartilhadas aventuras e viagens, que seguem pelo blog pedalareviajar.com, Vera Marques passa a integrar uma tríade referencial para as minhas memórias.
Ainda guri, anos 70, graças a Shazan, Xerife & Cia, andei de “camicleta”. Paulo José e Flávio Migliaccio, magos inesquecíveis.
Em 1982, à luz do luar no interior do Cine Cruzeiro, sessão de domingo. Pedalamos, minha namorada e eu, ao lado de Elliot e Spielberg. Levamos E.T. de volta para casa.
Vera Marques ensina que a sensação de abandono, frio e incerteza pode surpreender até mesmo num cenário de beleza e encanto. Do nosso ponto de partida ao Fim do Mundo, o paraíso dependerá da força no pedal.
Assim, pedalo adjetivos para reiterar minha admiração. Intrépida, destemida, valente, ela confirma que a vida pode ser um sonho “à vera”. Uma expressão que, quando criança, usávamos em brincadeiras, sempre que o jogo era sério, para valer. Vera me fez redescobrir que bicicletas podem voar.
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Foto da Capa: Acervo particular.