Cecília Tomé Vilela é uma mulher de uns 30 anos, formada em medicina, com especialização em pediatria. Tem um consultório no mesmo edifício que seu pai, um veterano caloroso da mesma profissão – um temperamento que contrasta com a abordagem mais distanciada e técnica com que Cecília costuma lidar com seus pacientes e com as famílias destes. Ah, sim, faltou o mais importante. Cecília, protagonista do recente A Pediatra, de Andréa del Fuego, lançado no ano passado e atual finalista dos prêmios literários São Paulo e Oceanos, é uma mulher profundamente desagradável.
A Pediatra é uma sátira poderosa na qual a impactante figura de Cecília parece ser o mais recente exemplar, transplantado para o Brasil, de uma tendência já bastante praticada na literatura estrangeira, a da personagem feminina que, mais do que realista ou construída com mais camadas, é, na verdade, uma figura detestável que ainda exerce aos olhos do leitor um charme e um fascínio que as torna interessantes não apesar de seus defeitos de caráter, mas por causa deles. Este é o terceiro romance da escritora paulistana Andrea del Fuego, lançado em julho do ano passado. Escrito em uma linguagem direta e reta, com frases curtas e sincopadas, em um estilo que de certo modo se afasta bastante da voz literária que Andréa havia empregado em obras anteriores como Os Malaquias ou As Miniaturas, o romance é narrado em primeira pessoa por sua protagonista Cecília, uma pediatra que detesta crianças e uma médica que detesta a Humanidade, em geral.
Signos de Autoridade
Cecília é autocentrada, aferrada aos signos de autoridade de sua posição social e de sua qualificação profissional. Seus motivos para fazer carreira não têm a ver com paixão e sim com a continuidade de um “negócio familiar” e com o exercício dessa autoridade. Embora goze de boa reputação profissional e não lhe faltem clientes, o traço recorrente que se ressalta de Cecília como protagonista é fazer o contrário daquilo que o bom senso determinaria. Ela enveredou pela medicina para agradar o pai, especializou-se em clínica pediátrica para não se perder no mundo acadêmico – e, ela própria admite, para poder trabalhar do modo mais objetivo e desapaixonado possível, já que já que odeia crianças.
O começo da narrativa flagra Cecília em um momento de crise matrimonial e acossada pela concorrência de um novo tipo de profissional surgido após as mudanças de foco recentes na discussão sobre os direitos reprodutivos da mulher, com efeitos que podem se estender à sua própria prática médica. Como profissional de saúde, Cecília não é apenas uma médica antipática que prefere tomar distância de seus pacientes assim que possível e só tolera acompanhar uma paciente até a gravidez, no máximo. Seu próprio comportamento ético é questionável – ela começa um caso amoroso com o marido de uma de suas pacientes.
Ao contrário dos múltiplos panoramas de extensos romances mais tradicionais, A Pediatra se apropria de uma estrutura mais similar à do subgênero da novela: seu foco, seu interesse, mesmo seu ponto de vista são concentrados em um único personagem, Cecília, e suas ações. Ao mesmo tempo, o uso de uma técnica de exacerbar os defeitos da protagonista a tal ponto que provoquem choque se torna, a partir de determinado momento, um poderoso elemento de sátira.
Crise e Autoilusão
A partir de determinado momento da narrativa, a vida aparentemente bem ajustada de Cecília começa a se deteriorar. O marido a abandona, ela começa a perder clientes para um médico com uma abordagem “nova era” mais centrada no parto natural e, como cereja do bolo, ela começa a desenvolver uma obsessão com o filho de seu amante, Bruninho, uma das crianças a quem ela ajudou a nascer e que parece romper de uma única vez todas as barreiras, defesas e indiferenças de Cecília dedicadas a crianças. Embora esse seja o momento de crise mais aguda na trajetória da personagem, a construção precisa do romance já demonstra muito antes disso que um dos grandes problemas da protagonista é uma certa autoilusão complacente que a impede de enxergar o mundo e seu papel nele.
Ela se entrega a agressivos monólogos contra os procedimentos “bicho-grilo” de seu competidor, elencando mesmo supostos riscos à saúde das gestantes, mas em boa parte do livro as descrições rápidas e um tanto omissas que ela faz de suas próprias cesarianas demonstram que os resultados não são muito melhores mesmo nessa prática escudada por uma ciência oficial. Grávidas que, após anestesiadas, não conseguem fazer força e precisam ter a barriga pressionada até a expulsão do bebê, nascituros com pouco tônus muscular e sem vigor ao nascer, procedimentos de conclusão de cirurgia um tanto agressivos são constantes nas próprias práticas de Cecília.
Cecília como protagonista é um grande exemplo de um conjunto de determinadas escolhas só tornadas possíveis de uns anos para cá. Para começar, é uma mulher colocada no papel de uma protagonista detestável. O herói imperfeito ou francamente desagradável não é uma novidade em termos gerais na literatura (Pelo contrário, com o nome de “anti-herói”, uma variação desse perfil se tornou um padrão recorrente em vários tipos de ficções recentes, não apenas nos livros). Mas, em geral, esse herói falho costuma ser um homem. Mulheres “detestáveis” na literatura normalmente estão em papéis de antagonista ou cumprindo o velho estereótipo da “megera”, numa dicotomia pouco original apontada por mais de uma comentarista – a ensaísta Roxane Gay é o exemplo recente mais célebre.
Protagonistas Imperfeitas
Esse tipo de protagonista imperfeita se tornou mais frequente nos últimos anos em obras estrangeiras das mais diversas, e um sinal de como esse novo “tropo” parece ter se enraizado é a sua presença mesmo na literatura de corte mais popular, como Garota Exemplar, de Gillian Flynn ou A Garota No Trem, de Paula Hawkins. Mais do que “desagradáveis”, essas personagens desafiam diretamente não apenas os lugares-comuns literários da representação feminina alternada entre “heroína” ou “megera”. Elas também o fazem com uma desconstrução direta das instituições e práticas sociais frequentemente brandidas como métrica para os variados níveis de realização de uma mulher: casamento, maternidade, divórcio e carreira. São personagens que desafiam a simpatia em sua ocupação distorcida dos papéis esperados – inclusive socialmente – das mulheres (mãe, esposa, filha), resistindo às mitologias sexistas e às pressões sociais. Ao mesmo tempo, também permitem, por meio deste retrato, o afloramento sutil de elementos como dor, vulnerabilidade, desespero e decepção, sentimentos enraizados na psique mesmo das figuras mais falhas.
A abordagem que Andrea del Fuego faz dessa mesma tendência em A Pediatra permite que ela inclua elementos tipicamente “brasileiros” na mistura, principalmente uma inescapável divisão de classe, expressa no contraste entre Cecília e a empregada de seu apartamento, Deise, mulher pobre que, grávida e completamente desassistida, ao contrário das pacientes de elite da pediatra, representa um transtorno para a patroa. A personalidade cáustica de Cecília e sua profissão ligada à saúde também permitem que a autora aborde outra questão específica do Brasil um país em que a maternidade não é apenas a “medida do valor” de uma mulher, mas um território em disputa entre a medicina tradicional e o desejo das mulheres de terem mais autonomia na hora do parto. Enquanto a OMS recomenda que os números ideais para partos por cesariana fiquem em torno de 15% dos casos imprescindíveis, no Brasil, segundo país do mundo em número de cesarianas, esse procedimento representa 55% do total de partos – número que sobe para 88% na rede particular de saúde. Ao mesmo tempo, pesquisa de 2014 da Fundação Getúlio Vargas mostra que 70% das mulheres desejam um parto normal no início da gravidez, em contradição com o grande número de cirurgias no fim do processo, ao longo do qual foram desencorajadas da ideia. É estatisticamente improvável que todas essas gravidezes tenham representado riscos.
O que torna A Pediatra um livro rico, contudo, é que a sátira não é direcionada apenas à personalidade narcísica e imperfeita de sua personagem principal, o que seria um caminho fácil. Mesmo as diatribes mal-humoradas da personagem são enraizadas em elementos que também funcionam como uma sátira à estrutura social brasileira, livrando a personagem da mera caricatura: o “parto natural” imbuído de misticismo como uma “moda” dentre as classes confortáveis, em oposição ao abandono geral da mulher das camadas populares; a distância cada vez mais acentuada da profissão médica da vida humana que deveria cuidar; e, por último, mas não menos importante, a inconsequência masculina ao longo das várias etapas do processo.