Faz pouco tempo que sou adepta das férias de inverno. Nunca fui capaz de empilhar mais do que dois anos sem parar. Ao tentar, a sabedoria do corpo se fez mais forte e, assim, alguma gripe sempre deu um jeito de forçar alguma parada. Então, fui aprendendo que pausar era o melhor a fazer. De todos os modos, percebo que ainda não encaixei bem com as tais férias de inverno. São mais curtas e, pelo menos para mim, exigem mais tempo para poder chegar a relaxar. Ainda assim não desisto.
Deve ser algum resíduo de capitalistite crônica. Afinal, não há corpo trabalhador que não padeça ou padeceu desse grande mal neoliberal que é a ideia de não parar, nunca desligar a máquina. Por isso, me causa certa graça – e, além disso, embaraço – quando, ao anunciar as férias, cada vez mais pessoas têm me dito um curioso “parabéns!”. As férias, assim como os sindicatos, estão entrando em extinção. Isso diz muito sobre a precarização cada vez maior das condições e das relações de trabalho. É a vitória da ideia neoliberal do empreendedorismo de si que, a reboque, faz daquele que tira férias não um trabalhador em repouso, mas um privilegiado, quase um sacana. Bem sei que quem me parabeniza reconhece as férias como um gesto na contramão dessa loucura. Ainda mais no meu caso, uma psicanalista, quer dizer, uma trabalhadora autônoma. Lamentavelmente, sei de muitos autônomos que por anos não conseguem organizar as tão merecidas férias, porque também se leva um tempo até se poder estabelecer alguma consolidação própria, como uma CLT pessoal que possibilite dignificar o trabalho com qualificação, mas também com um repouso que não comprometa o orçamento. Daí a opção de muitos por não parar. Ainda não somos robôs e, embora nem sempre pareça, essa ainda é a melhor notícia.
É claro que – como bem aprendi e até hoje não consegui desmentir – o inconsciente não tira férias. Contudo, uma analista escuta com um corpo. E esse corpo a cada tanto vai só vai querer saber de un vestido y un amor. O corpo é esse mestre de cerimônias que quer controlar tudo para que os eventos sejam exitosos. E, ao mesmo tempo, é também o convidado caprichoso, inapropriado e meio sem jeito; daqueles que se não tratamos com cuidado começa a dar vexame na festa. As férias são a maneira de lembrar que não somos apenas chefes de nossas vidas, mas que somos, principalmente, os convidados.
É absolutamente conveniente para alguns poucos que isto não seja ensinado junto com as diferentes profissões. Aprendemos que trabalhar serve para ganhar dinheiro. Poucas vezes aprendemos que também poderia servir para ganhar tempo. Tempo de vida se o dinheiro consegue oferecer condições dignas e tempo de qualidade para que a vida não se resuma a trabalhar e pagar contas. Em um âmbito mais particular, diria que nós, mulheres negras brasileiras, podemos chegar a sentir muita dificuldade em parar. Foram muitas gerações ensinadas apenas a servir. E outras tantas acostumadas a nos ver somente nesse lugar.
Além dos anos de escravização, houve uma saída maquiada dessa condição – a falsa abolição – que culminou em um brete que nos encurralou em uma condição reiterada de trabalho doméstico. E, se conseguimos sair disso, romper com esse ciclo, nem por isso essa condição de cobrança se ameniza, mas, finalmente, nos coloca em uma autoexigência a que sejamos extremamente eficientes, que nossos estudos sejam infinitos e que nunca nos sintamos confiantes o suficiente. Nesse contexto, para muitas de nós as férias são um sacrilégio imerecido. É evidente que uma boa cota de neurose também se joga nessas circunstâncias, mas aqui recordo que a racialidade não se escamoteia desse debate.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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