Woo Young-Woo é a protagonista do seriado coreano “Uma Advogada Extraordinária”, um dos mais assistidos no Netflix nas últimas semanas, no Brasil e mundo afora, contando a história da advogada que, mesmo quando não quer, lembra aos presentes que seu nome é lido da mesma forma de trás para a frente “como catraca, caneca, casaca, cômico e careca”.
Apaixonada por baleias e golfinhos, pode falar horas sobre esses animais que aparecem em seus insights, quando sua condição neurodiversa permite ver uma solução onde todos enxergam só problemas. A atriz e personagens são simpáticos e cativantes e, confesso, estou com saudades dela depois que assisti todos os episódios disponíveis, mesmo com algumas críticas à série.
Alerta de spoiler: se você não viu a série, eu conto acontecimentos de alguns episódios.
A trama vai mostrando a trajetória de Woo e de sua equipe de forma sensível, retratando as dificuldades enfrentadas pela advogada em seu cotidiano, abordando questões sociais de forma crítica, mas também divertida. E, claro, tem romance. Bastante tímido para quem acompanha as cenas de novelas brasileiras, mas ele está lá, sim.
Não pretendo fazer aqui uma análise crítica da série, mas conversar sobre como o autismo é visto na Coreia do Sul, sofrendo bastante estigmatização em uma sociedade coreana caracterizada pela valorização da normalidade e a uniformidade (na série até mesmo o figurino dos personagens prima pelos tons pastéis e discrição).
Crianças limítrofes
Tentando fugir desses estigmas, as famílias coreanas raramente admitem a condição de seus filhos e filhas, preferindo dizer que a criança tem “tendência” ao autismo. E é das mães dessas famílias que emerge o conceito de “criança limítrofe”.
Essa é uma expressão tipicamente coreana. O conceito guarda certa semelhança com o Transtorno Global de Desenvolvimento (TGD), diagnóstico muitas vezes usado para afastar o autismo ao mesmo tempo colocando a criança nos limites da dita “normalidade”.
Para além das semelhanças, o conceito coreano é mais preciso e adapta-se à realidade local ao definir a “criança limítrofe” como alguém que passa por dificuldades sociais, porém com excelência acadêmica.
Excelência acadêmica
O desempenho acadêmico é uma qualidade muito valorizada na sociedade coreana e o ingresso em uma boa universidade é visto como o passaporte para um futuro com segurança financeira e prestígio social. O resultado são jornadas de estudo extenuantes em que os estudantes são comparados a gladiadores jogados em uma arena onde competem ferozmente com seus colegas.
Uma criança autista não será uma “gladiadora”: seu destino é uma precária instituição de educação especial com a perda do sonho dourado de uma universidade de prestígio. Seu futuro, já está condenado de antemão.
Já para a “criança limítrofe”, boas notas são o passaporte para a normalidade. Desde que não atrapalhe seus colegas, quando poderá ser vítima de bullying, ignorado ou até mesmo estimulado por professores como contam os antropólogos Grinker e Cho em sua pesquisa sobre o tema.
A protagonista Woo é uma exceção por assumir-se autista e ter passado pela educação regular. O enredo a trata como uma quase celebridade: a primeira advogada autista da Coreia, causando espanto em seus colegas, clientes e amigos.
Mães gerentes
Se as crianças são comparadas a lutadores em combate, o mundo não menos feroz das mães é habitado pelas chamadas “mães gerentes”, dedicadas a organizar o pesado cotidiano de seus pequenos.
Às mães é destinado um espaço nas escolas, com salas e atividades próprias, interferindo no cotidiano dos estudantes e guerreando pela atenção dos professores. Por outro lado, são julgadas pelo desempenho escolar de seus filhos. Compartilham os louros pelas vitórias, mas também dividem os amargos frutos do fracasso. Se a criança é estigmatizada, a mãe é jogada junto ao ostracismo.
A elas é reservada uma versão local da infame teoria da mãe geladeira, considerando o autismo como consequência da frieza e falta de amor da mãe com a criança autista. O país apresenta um número recorde de diagnósticos de transtorno de apego reativo, condição que prejudica o estabelecimento de laços sociais em decorrência de ambientes hostis ou traumáticos na infância.
Nessa outra forma local para evitar os estigmas associados ao autismo, a mãe é considerada a grande culpada pelo autismo do filho, como era bastante comum há algumas décadas no Ocidente.
Final de temporada
O autismo, a exemplo de outras condições psiquiátricas e de saúde mental, não possui um marcador genético ou biológico que permita um diagnóstico fácil. Não é como a covid-19, quando basta se dirigir a um posto de saúde ou uma farmácia e se esperar o positivo ou negativo.
Essas fronteiras menos rígidas acentuam as disputas entre diferentes atores, levando a mudanças e adaptações aos vereditos médicos. Indo contra o senso comum, o consultório médico não determina o que é autismo, mas, sim, o significado dele naquela sociedade elaborado por autistas, pais e mães, demais professores de saúde.
Nesses parágrafos, provocado por “uma advogada extraordinária”, tracei alguns aspectos de como o autismo é visto na Coreia e como ele é vivido lá de uma forma distinta daqui. Da mesma forma como são diferentes as nossas escolas, escritórios, namoros e comida. Tanto é assim que a maioria de nós sequer conhecia o kimbap*, mas Woo Young Woo jamais viveria sem eles.
*Nota do Editor: Kimbap é uma espécie de sushi coreano