Achei importante trazer para o grupo a carta encaminhada para escolas do Rio de Janeiro, assinada por Kenia Rio, advogada, presidente da Associação Nanismo Brasil/ANNABRA. Ela afirma que um local de aprendizagem tem “o dever de assentar os seus princípios de formação na consciência ética e ensinar as crianças, desde o primeiro momento, a desenvolver um sentimento de respeito e tolerância para com todas as pessoas, semelhantes ou diferentes delas”.
É um pequeno guia que diz muito do que eu penso. Explica o que é o nanismo e sinaliza a importância de um tratamento natural para que a convivência na escola seja solidária e acolhedora, o que é necessário para todas as diferenças.
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“Estimados Professores e Técnicos de apoio educativo do aluno/a. Tem uma patologia de crescimento designada Acondroplasia. É uma doença rara que surge por uma mutação genética e que provoca uma variante de nanismo desproporcional. É pouco conhecida, tanto do ponto clínico como do ponto de vista social. Por este motivo, reunimos informações e conselhos de forma a enquadrar e responder muitas das perguntas que possam ter, assim como dúvidas dos alunos. As crianças, tanto na escola como em casa, provavelmente terão curiosidade em perceber por que é diferente. Com este guia, esperamos dar bases para quando forem feitas perguntas ou comentários sobre sua estatura, para que possa esclarecer as pessoas, de forma aberta, direta e honesta.
A acondroplasia é a forma mais comum de nanismo. A mutação ocorre pela troca de um único aminoácido por outro, ao nível do cromossoma 4, mas produz alterações profundas no desenvolvimento do esqueleto. Caracteriza-se pelo encurtamento dos ossos longos das pernas e braços, sendo que a coluna vertebral mantém-se dentro do crescimento médio. Esta dissonância entre membros e coluna provoca um crescimento corporal desproporcional. A mutação na acondroplasia altera o gene que produz o receptor 3 do fator de crescimento de fibroblastos nos condrócitos, as células que constituem a cartilagem e as placas de crescimento dos ossos longos. A cartilagem sofre uma redução intensa de espessura e o osso, que se forma pela substituição de condrócitos por osteócitos, impede que ocorra um crescimento ósseo saudável.
Pessoas com acondroplasia têm um tronco de tamanho médio, pernas e braços curtos, cabeça grande, além de outras características físicas.
A mutação genética da acondroplasia foi descoberta em 1996 e os avanços na investigação são cada vez mais animadores. Muitas equipes de investigação espalhadas pelo mundo trabalham para a possibilidade de conseguir um tratamento eficaz e real. Há cerca de 460 diferentes tipos de nanismo congênito descritos. A acondroplasia tem uma prevalência média mundial de um caso em cada vinte mil nascimentos e, em 80% dos casos, é uma mutação de novo, que surge espontaneamente numa das células reprodutivas de um dos progenitores. E como a mutação é dominante, é sempre manifestada. Os adultos com acondroplasia têm em média entre 1,20m e 1,35m de altura. É possível aumentar a estatura definitiva através de um processo cirúrgico de alongamento ósseo, que consiste em cortar os ossos longos e aplicar fixadores externos durante o processo, que é lento e doloroso. As crianças podem ser tratadas cirurgicamente entre 10 e 12 anos e podem crescer até 30 centímetros. Neste momento, é o único método disponível para ossos em crescimento. Há patologias hormonais de crescimento que são tratadas com medicamentos (por exemplo, nanismo hipofisárico), mas não têm eficácia na acondroplasia.
A esperança de vida e QI de pessoas com acondroplasia são as mesmas que as de pessoas de estatura média, embora crianças com esta condição genética muitas vezes tenham atrasos no desenvolvimento motor, especialmente os lactentes devido à desproporção mais acentuada no seu corpo. Ao longo da vida, a acondroplasia potencia um elevado número de patologias, tais como otites crônicas, patologias neurológicas, problemas de coluna, encurvamento das pernas, apneia do sono, mas a qualidade de vida das crianças pode melhorar com um seguimento médico próximo e adequado.
Do ponto de vista social, as pessoas com acondroplasia enfrentam uma série de clichês e preconceitos culturais e históricos, que prevalecem até hoje. Parece existir um halo “cômico” e “circense” em torno delas, que pode ser doloroso e levantar sérios problemas de adaptação social. A escola, como local de aprendizagem, tem o dever de assentar os seus princípios de formação na consciência ética e ensinar as crianças, desde o primeiro momento, a desenvolver um sentimento de respeito e tolerância para com todas as pessoas, semelhantes ou diferentes delas.
As reflexões que seguem podem facilitar a adaptação de todos.
A palavra “anão”, termo mais usado, tem várias conotações negativas. Existem termos que são menos pejorativos como: “pessoa com nanismo”, “pessoa com restrição de crescimento”, “pessoa com acondroplasia” ou “acondroplásico”. Os adultos tendem a proteger e tratar como bebês crianças que parecem mais pequenas e, em muitas ocasiões, são menos exigentes com elas do que com outras da mesma idade. Para os adultos, uma criança com estatura muito abaixo da média comporta-se de forma mais próxima à idade que aparenta do que à idade que realmente tem e age como se fosse menor, porque é uma boa maneira de evitar brigas e responsabilidades e receber mais atenção. Este comportamento pode causar grandes problemas no seu desenvolvimento: falta de assertividade, dependência dos pais, uma imagem negativa de si mesmo.
O nosso filho poderá requerer atenção de saúde, mas não pedimos um tratamento especial. Gostaríamos que fosse tratado por todos, e de forma consistente, de acordo com sua idade e não com sua altura. Os professores e os pais devem estar cientes do efeito que a estatura pode ter nas suas relações sociais e devem evitar que se torne mascote da turma ou que as suas expectativas sejam mais baixas.
Em geral, e também como resumo, desejamos que possam seguir com os seguintes pontos no trato:
– Explicar e ensinar às outras crianças que o novo colega tem a idade deles e, por isso, devem tratá-lo de acordo com sua idade e não com sua altura.
– Deixem que ele faça por si mesmo tantas coisas quanto possível. Devemos encorajá-lo a ser completamente independente. Muitas vezes terá de encontrar uma maneira criativa para chegar a algum lugar ou para fazer alguma tarefa. Pode ser tão simples como empurrar uma caixa e transformá-la num degrau. É importante que faça estas coisas sem ajuda. Incentive também as outras crianças a deixar que ele faça sozinho. Eles irão sempre tentar ajudar e podem não perceber que isso pode limitar o desenvolvimento daquela criança.
– Não deixem que as outras crianças levantem a criança com nanismo no ar. É uma brincadeira frequente, muitas vezes, porque as crianças se sentem animadas por conseguir segurar um colega tão pequeno e da mesma idade. Isso vai dar um estado de “bebê” e pode ser perigoso. As crianças com acondroplasia podem lesionar a coluna vertebral mais facilmente do que outras crianças e podem se magoar e cair.
– Se colocarem as crianças em fila para subir ou descer escadas, evitem que vá na frente. As escadas são altas para as suas pernas e demoram mais tempo para subir e descer. As outras crianças podem empurrá-lo e magoá-lo.
– As crianças com acondroplasia transpiram mais do que as outras e precisam eliminar o calor corporal, têm mais necessidade de beber água e, provavelmente, demoram mais tempo para se despir e ir ao banheiro.
– Como os seus membros são mais curtos e a cabeça é grande e pesada, caem muitas vezes. Se caírem de costas ou baterem com a cabeça, contatem-nos.
– As crianças com restrição de crescimento têm tendência a ter problemas de obesidade, por isso é importante que desde cedo adquiram bons hábitos alimentares. Embora as crianças sejam mais ativas e necessitem de mais calorias, a quantidade que precisam para o seu desenvolvimento físico é menor do que para meninos da sua idade.
– Pedimos que observem se precisa de ajuda para fazer coisas que as crianças da sua idade fazem de forma independente em atividades físicas, num jogo desportivo ou num trabalho na classe, que estejam restritos a ele/a devido à sua estatura, ou se o seu campo visual dentro da sala de aula é apropriado. Alguns problemas são fáceis de resolver com uma caixa resistente, tabuleiros ou escadote. Existem obstáculos físicos, mesmo não significativos, que podem ser superados com um pouco de engenho e capacidade de recursos.
– Qualquer criança precisa se sentir segura nos lugares onde passa o tempo, em casa, no jardim de infância, na escola e por último, no mundo exterior. Se surgirem ataques ou ofensas verbais que vão além do que é usual entre as crianças familiarizadas com a condição, os professores ou adultos responsáveis devem ser informados. A supervisão de um adulto pode travar as brigas e ofensas antes que se tornem grandes.
– Se durante as atividades de leitura, surgir algum texto com referência a “anão” ou “anões”, pedimos cuidado para que isso não seja motivo de riso ou ridicularização e que haja uma identificação entre a personagem da história. Se presenciarem grandes conversas entre as crianças, é bastante frequente que estas crianças tentem desenvolver, como um mecanismo de compensação, relações estreitas com os seus amigos e uma vertente social que é mais importante para eles do que a pedagógica.
– Acreditamos que seria altamente desejável que, antes de iniciar as aulas, seja dada uma curta sessão de esclarecimento em todas as salas de aula. Podem explicar que o novo colega tem um problema de crescimento que o faz crescer muito menos do que as outras crianças. Digam que é uma criança como eles, que nasceu com esta limitação física, assim como há crianças que nascem sem ouvir (chamado de “surdo”) ou sem ver (chamado de “cego”). Expliquem, resumidamente, o que significa ter uma incapacidade.
– Este menino não “está doente”. Tem uma altura diferente da deles, mas é como eles em todo o resto. Acreditamos que esses esclarecimentos podem evitar um choque repentino ou problemas que possam surgir e que podem ser prevenidos de forma pacífica. A sociedade tende a julgar as pessoas pela aparência física e ao não encaixarem aos padrões culturais do que é bom ou mau, do que é bonito ou feio, pode ser muito doloroso para quem não se enquadra. Ensinar as crianças a ter consciência de valores morais e sociais importantes, como honestidade, coragem, amizade e bondade, é enriquecedor não só para crianças diferentes, mas para todas.
– Incentivá-los a desenvolver seus talentos em diversas áreas, perceber em que atividades se destacam, dizer que todas as pessoas podem fazer algo pelos outros, é tão importante quanto ensinar português ou matemática. Incentivar a autoestima, a avaliação realista das suas capacidades, contribuir para o desenvolvimento de adultos independentes e adaptados é uma tarefa que se consegue através da atenção a um conjunto de detalhes, em um trabalho constante. Talvez pareça uma tarefa maior do que a possível de executar, mas todos podem ajudar a mudar o mundo. Para uma pessoa distinta, com o seu mundo emocional a desenvolver-se, ser apontada e excluída por ser única, pode ter repercussões complicadas.
Ajudar a mudar o mundo começa ao virar da esquina, no parque infantil, na sala de aula. É agir no mundo. É o começo!
Agradecemos profundamente o apoio, o afeto e a vontade de cooperação para que, nos pequenos momentos e atos cotidianos em que ensinarem as nossas crianças, elas possam crescer melhores seres humanos.
Atenciosamente, KENIA RIO, Presidente (Rua Senador Dantas, nº 75, sala 1615, Centro – Rio de Janeiro – Fone 22404124)”.
Todos os textos de Lelei Teixeira estão AQUI.
Foto da Capa: Kenia Rio / Reprodução do Instagram