Porto Alegre é uma cidade marcada por contrastes: entre o histórico e o contemporâneo, entre o urbano e o natural, entre o possível e o esquecido. No coração dessa dualidade, ergue-se (ou melhor, erguia-se) o mural “Veracidade”, uma obra monumental que se tornou mais do que uma simples pintura – tornou-se um símbolo. Um símbolo de resistência cultural, de valorização da identidade afro-brasileira e, acima de tudo, de uma cidade que deseja se reconhecer em sua pluralidade.
Com 65 metros de altura e uma história que ecoa muito além de suas pinceladas, o painel “Veracidade”, na lateral do prédio do DAER, retrata Mãe Bia, uma mulher que representa força, sabedoria e a conexão com as tradições ancestrais. Porém, o mural que coloriu a paisagem urbana de Porto Alegre e trouxe reflexões profundas está com os dias contados. Em 2025, ele será apagado devido à reforma do prédio, e com ele perderemos um fragmento importante da nossa alma coletiva.
Arte como memória e resistência
A arte urbana sempre foi uma ferramenta de resistência, um lembrete de que as cidades não são apenas concreto e asfalto. Elas são organismos vivos, pulsantes, moldados pelas histórias, lutas e esperanças de seus habitantes. O mural “Veracidade” não era apenas uma intervenção estética – ele era um convite ao diálogo, à introspecção e à valorização daquilo que nos define enquanto comunidade.
Removê-lo não é apenas um ato técnico, mas uma decisão que nos leva a refletir: como podemos viver em uma cidade onde a arte, a cultura e a criatividade não têm espaço para prosperar? O apagamento do mural não é apenas físico, mas também simbólico. É um alerta para os riscos de nos tornarmos uma sociedade que prioriza a funcionalidade em detrimento da inspiração.
A cidade sem alma
O surrealismo de não ter arte é habitar uma cidade onde os muros são apenas barreiras e não telas. É caminhar por ruas onde não há cor, emoção ou narrativa. A ausência de projetos como “Veracidade” nos empurra para uma realidade estéril, onde prédios são reformados, mas os corações das pessoas permanecem intocados, talvez até esquecidos.
Porto Alegre precisa de mais “Veracidades”, não de menos. Precisamos de murais que nos lembrem de nossas raízes, de nossas complexidades e de nossas possibilidades. A arte não é um luxo; é uma necessidade. Ela nos inspira, nos desafia e nos conecta. Sem ela, o que nos resta?
Como preservar a inspiração
Se a remoção do mural é inevitável, que ela seja acompanhada de uma contrapartida à altura. Que novos projetos sejam desenvolvidos, que outros prédios sejam transformados em galerias a céu aberto. Que a memória de “Veracidade” não desapareça com a tinta, mas permaneça viva nas ruas e na consciência dos porto-alegrenses.
E mais: que a cidade aproveite esse momento para refletir sobre o que realmente importa. Não podemos permitir que a arte seja uma exceção; ela precisa ser a regra. Precisamos de políticas públicas que incentivem e protejam manifestações artísticas, de uma sociedade que veja valor na cultura e de lideranças que entendam que, sem criatividade, não há progresso.
Um convite à ação
Porto Alegre, não deixe que “Veracidade” seja apenas uma lembrança. Que sua remoção seja um ponto de partida para discutirmos o papel da arte em nossas vidas. Que possamos criar uma cidade onde cada parede conte uma história, onde cada esquina inspire uma ideia e onde cada habitante se sinta parte de algo maior.
Porque viver sem arte é apenas sobreviver. E Porto Alegre merece mais do que isso.
Dreyson Queiroz é sócio e head de Cultura de Inovação na CLASH, Agile Coach, Design Thinker, Facilitador Criativo e UX Designer. Tem especialização na área criativa, com pós-graduação em Antropologia e Transformação Digital. Criador do projeto "Conta pro Queiroz", é conselheiro do Clube de Criação/ RS, integra o board da UNESCO-SOST Transcriativa, é Fellow da ACUMEN. Participa de movimentos como Corporate Hackers, POA Inquieta, Rede de facilitadores Brasil, Domos Design (Instituto Caldeira) e OpenInnovationBR.
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Foto da Capa: PGE/RS