Pode parecer escalafobético, em um site em que tantas questões essenciais são debatidas todos os dias, falar em buscar distância das notícias. E é. Mas tem sido essa a minha maneira de sobreviver com alguma saúde mental neste mundo cada dia mais pesado, injusto, cindido. Criada em uma família de esquerda, cresci com a convicção de que ser um “alienado” era a forma mais abjeta e egoísta de existência.
Até não muito tempo atrás, eu mal disfarçava meu desprezo por pessoas que não tinham noção (ou opinião firme) sobre as mazelas existentes no planeta. Isso me era tão caro que, aos 8 anos de idade, passava os recreios sentada sem brincar preocupada com a guerra das Malvinas. Aos 11, chorei pela morte de Tancredo Neves. Pouco antes de entrar na faculdade, aos 17, sofri pelos mortos da primeira Guerra do Golfo. Sem falar do sofrimento compassivo diário com a miséria humana que nos cerca a todos os brasileiros privilegiados desde o momento em que nascemos.
Seguindo um caminho natural, acabei estudando jornalismo e, durante 12 anos, trabalhei em redações. Por oito deles, fui editora de sites de notícias diárias – no jargão, em “bom português”, chamadas hard news. E, de fato, eram majoritariamente novidades duras as que surgiam a cada momento. Como não era repórter, não chegava a me aprofundar em muitos assuntos, mas, sendo uma das responsáveis por selecionar os temas mais palpitantes para destacar no site – funcionando como um “algoritmo de conteúdo humano” –, precisava me inteirar de tudo.
Ainda lembro da sensação de levar para casa a tensão do sequestro do Ônibus 174, de precisar de semanas para me recuperar física e mentalmente dos dias de mais de 12 horas trabalhando na cobertura dos atentados 11 de setembro. Sem mencionar as tantas notícias sobre conflitos, sequestros, denúncias de corrupção e injustiças perpetradas por poderosos de todos os escalões por toda parte. A função social do trabalho muitas vezes ficava evidente, e era gratificante, mas o estresse contínuo em que eu vivia cobrava um preço.
Em 2007, fui transferida para um setor corporativo da empresa, onde as pessoas consumiam notícias de maneira infinitamente menos voraz. Algumas sequer consumiam. No começo, isso me exasperava. Com o tempo, passei a invejar a capacidade que a maioria tinha de se desligar, de fazer pausas, de dar um tempo à própria empatia. Mais alguns anos, e em 2012 eu já fui capaz de ajudar a planejar a cobertura de eleições sem me envolver com o quadro político.
Dali em diante, venho me policiando para me dar intervalos. Já não leio jornais todos os dias, às vezes chego ao ponto de nem sequer abrir as newsletters de veículos de imprensa que (ainda) chegam diariamente ao meu e-mail. Faz apenas uns dois anos que consegui não sentir culpa por isso. Em contrapartida, sou cada vez mais admiradora dos colegas de ofício que seguem na linha de frente. Não sei quantas vezes durante o governo Bolsonaro e a terrível pandemia da Covid-19 agradeci por não ter a responsabilidade profissional de me manter sempre atualizada sobre os fatos.
Minha primeira experiência de “autoalienação deliberada” foi no incêndio da boate Kiss. Minha filha tinha nove meses de idade, e eu fugi como pude do onipresente noticiário sobre o assunto. Uma amiga do Rio de Janeiro chegou a me indicar para cobrir a tragédia de Santa Maria in loco para um veículo nacional. Não tive coragem. Passado tanto tempo, ainda passo ao largo até mesmo das resenhas sobre a série disponível no streaming.
Cada vez mais conformada com o fato de que não conseguirei mudar o mundo de maneira significativa, busco consolo na ideia de que talvez possa atuar para melhorar meu entorno. Seja de fato ajudando quem está em dificuldades pessoas com dinheiro, trabalho, apoio, seja fazendo uma coluna para sugerir que meus poucos, porém qualificados, leitores se deem ao direito de não estarem totalmente informados sobre tudo o tempo todo. Como diz Caetano: “quem lê tanta notícia?”
* Não deveria ser necessário, por óbvio, mas, nesse período sombrio em que grassam informações falsas por vários meios e entre os mais diversos grupos humanos, vale ressaltar que não estar informado é absolutamente diferente de estar mal-informado. Melhor não saber nada sobre um assunto e, qual a sábia Glória Pires na cobertura do Oscar de 2016, não ser capaz de opinar, do que receber, consumir e repassar notícias falsas e desenvolver teorias e opiniões absurdas com base nelas.
Foto da Capa: Redação do jornal O Globo/Divulgação