Faz uns trinta anos. Um carinha pegou no meu pé. Publicamente. Com renitência. Começou a espalhar que a minha prosa era fraca, a minha poesia nem era, e as minhas ideias não mereciam ser lidas. A gente nunca sabe por que alguém pega no pé. Pode ter a ver com o resto do corpo e, mais ainda, com a alma, essa parte sem pé nem cabeça. Talvez tivesse a ver com um crítico literário que me saudava com entusiasmo, e não tinha saudado a ele, um caso legítimo de inveja. O tal crítico comemorava o imbróglio, dizendo que a pegação no pé é alvissareira em ambientes literários, Baudelaire havia sofrido centenas delas. Mas, quando a gente não é Baudelaire, essas coisas nos relançam a tempos antigos, quando professores reputados pegavam no pé da gente e a vida parecia sem saída.
Eu era muito jovem e a saída foi a Guerra. Peguei também no pé do carinha, tentando difamá-lo tanto quanto, mas em sentido contrário, principalmente em jornais, revistas e demais lugares de fofocas. Cheguei a convocá-lo para um duelo em carne e osso (sem palavras), a que não comparecemos, porque éramos candidatos a intelectuais. Mas eu tinha sangue no olho e o olho agora só olhava aquela Guerra. À distância, Sérgio Faraco observava. Ele já era meu amigo, embora fosse duas décadas mais velho, e um autor consagrado. Eu ainda batia cabeça com as palavras, sob o olhar esperançoso desse amigo e de tantos outros. A gente nunca sabe por que alguém fica amigo da gente, talvez porque, no caso, ele já fosse amigo do tal crítico literário que havia me saudado. Seja o que fosse, o Faraco observava atentamente aquela Guerra.
Sem mencioná-la diretamente, a sua tática para comigo era outra. E clara. Era nada fazer e simplesmente deixar que aqueles ataques se esgotassem em si mesmos. Ele me mantinha atualizado, dedicando-se a mandar notícias. Fulano parou de escrever sobre ti. Fulano se escafedeu. Fulano afundou na própria raiva. Fulano voltou à tona, mas agora se dedica a atacar outro. Havia, claramente, uma mensagem nas atitudes daquele autor que produzia uma literatura imensa, logo sem mensagens. A mensagem: “Não era recomendável perder tempo com aquela energia ruim, com aquele olhar raivoso, o sangue precisava voltar à parte melhor do olho.”
E voltou. Voltei a quebrar a cabeça com as palavras, e não com quem duvidava delas. Trinta anos depois, eu ainda quebro. Até hoje, não perdi a esperança de chegar a uma frase que dê a grande porrada e diga mesmo o que é o amor. Não o faria sem o apoio de amigos como o Faraco. Falando nisso, recomeça a Feira do Livro de Porto Alegre. Com livros, é claro, e o Patrono, essa dupla capaz de devolver a todos a confiança nas palavras e na vida.
Foto da Capa: Rodrigo H. Castilhos / Common Wikimedia
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