Muito se tem falado, nos últimos tempos, sobre uma epidemia de solidão.
Por todos os lados vemos notícias e pesquisas que testemunham o quanto, cada vez mais, estamos solitários. É uma preocupação tão grande a ponto de que alguns países vêm tomando esta questão como um tema de saúde pública.
E estão corretos nesta abordagem. Uma vez que sabemos que a nossa identidade depende do olhar dos outros, que nós somos também, e talvez predominantemente, a imagem que vemos refletida nos olhos daqueles que estão em nossa volta, então faz todo sentido que nos preocupemos com a solidão.
Quando perdemos os laços que nos sustentam, também algo de nossa percepção de nós mesmos se esvai. Nossos contornos vão se apagando.
Aqueles que viveram sozinhos a pandemia sabem bem do que estou falando. Não foram poucos os que sentiram que estavam desaparecendo à medida em que os dias passavam, em que a rotina era sempre a mesma. Pior ainda para aqueles cujos trabalhos não dependiam de mais ninguém, ou que não precisavam falar com outra pessoa, mesmo que virtualmente.
Tanto assim, que muitos de nós cultivamos o hábito de, volta e meia, enviarmos uma mensagem para os conhecidos, nem que fosse somente para saber como estavam e para mostrar que eles ainda existiam. Era reconfortante quando alguém entrava em contato conosco, fazia com que nos sentíamos vivos.
Para muitos, por outro lado, a saída do período pandêmico acabou tendo um efeito reverso, até mesmo traumático: voltar a encontrar os outros, a ser tocado e tocar, a falar para alguém e escutar alguém falar pareceu – e para alguns ainda parece – excessivo, talvez até mesmo invasivo.
Para a maioria, entretanto, foi um retorno à percepção de si mesmo, um reencontro com uma identidade perdida, ainda que provavelmente bastante modificada pelo tempo e pela penúria dos tempos pandêmicos.
Mas me chama a atenção que somente agora estejamos atentando para o fenômeno da solidão.
Até porque esta é uma problemática antiga em países como o Japão e os Estados Unidos, por exemplo. Nestes países, há tempos temos notícias de pessoas que resolvem se enclausurar em suas casas, ou até mesmo nos seus quartos, e dali não sair a não ser por algum necessidade muito urgente. No Japão, estas pessoas têm até um nome: são os hikikomori, e estima-se que sejam mais de meio milhão.
Talvez por algum tempo a nossa latinidade tenha nos tornado um tanto imunes a isto, mas também estamos vendo as queixas de solidão se avolumando aqui no Brasil. E isso deveria chamar a nossa atenção, especialmente entre os profissionais da saúde.
Ainda que as incidências sejam múltiplas, quando um tema assim toma conta dos noticiários e das pesquisas científicas, é importante que prestemos atenção aos sintomas que não são só individuais, mas que dizem algo sobre o social de forma mais ampla. Mesmo porque falar de solidão implica necessariamente questionar a forma como alinhavamos e sustentamos o laço social.
Se olharmos a questão desde um ponto de visto histórico, não é difícil perceber que a solidão não é um acidente de percurso mas sim o efeito de uma série de causas mais ou menos explícitas e que dizem muitos sobre os tempos que vivemos.
Ora, em uma época organizada em torno de um discurso de individualismo extremo, em que é transmitida a ideia de que cada um de nós é o único responsável pelo próprio destino, não é de se estranhar que tenhamos cada vez mais dificuldade em nos entendermos como parte de um todo. Aos poucos, fomos perdendo a percepção de que estamos inelutavelmente conectados com todos à nossa volta, mesmo com quem nem imaginamos que tenhamos algum relação.
A lógica neoliberal nos faz acreditar que somos fins em nós mesmos, especialmente através da consolidação do discurso da meritocracia e das práticas que o disseminam, como as terapêuticas que ignoram a causalidade social de nosso sofrimento singular.
Exemplo típico disso são as abordagens psicológicas e médicas que reduzem o indivíduo à sua dimensão neuroquímica. Quando supomos que sintomas depressivos são exclusivamente causados por um desequilíbrio de neurotransmissores (hipótese, aliás, que já foi cientificamente derrubada, mas que ainda opera no imaginário clínico), quando deixamos de lado que vivemos em um mundo que produz estes próprios sintomas, também estamos contribuindo para um progressivo isolamento dos sujeitos.
Ignorar a dimensão psicossocial dos males psíquicos não só joga o indivíduo no desamparo de supor-se responsável exclusivo pela sua dor, como também acaba consolidando o próprio discurso que produz este sofrimento.
Outro aspecto que também pode estar por trás desta chamada epidemia de solidão tem a ver com a forma como temos lidado com as diferenças.
Em uma época em que temos acesso a tantos recursos sob demanda, em que podemos assistir aos filmes e às séries que quisermos, em que podemos ouvir a música que temos vontade a qualquer momento, não é de se estranhar que esta lógica também se aplique às relações sociais. Será que não vivemos também dentro da fantasia de amizades on demand?
Se fulano de tal discorda minimamente de mim, então já não me agrada. Se emite uma opinião um pouco diversa, então precisa ser cancelado. O júri da internet é implacável, o ambiente das redes sociais acabou se tornando extremamente intolerante a qualquer diferença. O problema é que esta mesma rigidez saiu das redes e também acabou vindo para o “mundo real”.
Nos desacostumados a conviver com as diferenças, e não estou falando aqui das diferenças radicais, como questões políticas. Realmente não há porque sermos amigos ou convivermos com aqueles que adoram a morte e propagam o ódio. Estou falando aqui das diversidades que são próprias ao humano: afinal, não vemos todos os dias alguém de esquerda ser cancelado pelos seus pares progressistas?
Em uma cultura em que não suportamos o contato com quem não for um espelho fiel de nós mesmos, chamamos de tóxica toda relação que não se adeque ao que é esperado, em que o outro não se torna tão-somente um reflexo de nós mesmos. Isso isola o outro, mas também a nós mesmos.
Temos aí um cenário perfeito para nos tornarmos cada vez mais solitários e nos sentirmos profundamente desamparados dentro de uma realidade em que supomos que até mesmo o outro precisa ser gerado por um algoritmo que nos agrade.