Entre os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) promovidos pela ONU, o ODS número 2 – Fome Zero e Agricultura Sustentável – se propõe a “Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável.” Esse item e seus indicadores traduzem de forma concisa o que acontece dentro das Cozinhas Solidárias organizadas e mantidas pelo MTST pelo Brasil. Para que as refeições sejam servidas, há uma relação com outros movimentos sociais que defendem a preservação do meio ambiente e promovem a agricultura familiar, além da mobilização por habitações dignas em espaços urbanos.
Como pessoa que atua pela promoção da Diversidade, Equidade e Inclusão, acredito que esse seja o motivo que me vinculou de forma tão intensa à Cozinha Solidária da Azenha nesse recente e doloroso maio de 2024 para nós, gaúchos, e para todos que se solidarizaram mediante os impactos dos eventos climáticos extremos.
A alimentação é a base mínima essencial para nossas vidas. Se não estivermos nutridos, não conseguimos acessar ou lutar por Direitos Humanos e nem alcançar os demais 16 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável. Nessas linhas que seguem, trago um pouco da rica vivência que fez um endereço se tornar favorito em meu GPS: Av. da Azenha, 608 – Porto Alegre.
Todas as etapas que integram a rotina da Cozinha Solidária da Azenha, conduzida pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST/RS), são encantadoras. O espaço é uma verdadeira Escola, a começar pela diversidade de pessoas e experiências de vida que ali se encontram com um objetivo comum: promover a inclusão e o respeito por meio da alimentação.
Arroz soltinho, feijão cremoso, salada e o “cozidinho da resistência”, como definiu a chef Paola Carosella, integram o cardápio. Esse cozidinho leva carne moída ou frango, com a proteína sempre acompanhada de legumes. Tudo muito bem temperado. Fica o convite para quem puder experimentar ao se voluntariar no local.
Sobre ser apoiador voluntário na Cozinha
Na Cozinha Solidária da Azenha tenho o prazer de participar de inúmeras funções desde aquela sexta-feira 03/05/24, quando a operação de emergência teve início. Cheguei para doar duas cestas básicas e, em 20 minutos, saí dali carregado de engradados repletos de marmitas no porta-malas, rumo à Associação dos Moradores da Restinga (Amovir). Desde então, foram mais de 2.000 km rodados por diferentes recantos e comunidades de Porto Alegre (Lami, Sarandi, Rubem Berta, Morro da Cruz, Vila Dique, Humaitá…), todos atingidos diretamente ou fragilizados pelo evento climático.
Mas, como disse, todas as etapas são encantadoras. E pude atuar em várias: do transporte à intermediação de doações (água, roupa, itens de higiene, cobertores); do pré-preparo no corte de legumes à lavagem das panelas; do planejamento de Comunicação à captação de recursos financeiros; da retirada do lixo ao desembarque de cestas básicas de um caminhão da Conab – Companhia Nacional de Abastecimento. Uma experiência intensa e gratificante que fica impressa na memória, nas relações e nas novas e antigas amizades, que chegaram junto quando foi necessário. Minha família também se engajou, o que me alegra muito.
Um prato de dignidade
Dentre as experiências vividas, certamente a mais honrosa é a de servir uma marmita. Esse ato é simbólico e extremamente significativo. Experimente servir o alimento para quem você não conhece, mas sabe que precisa e valoriza cada grão. Pessoas que, muitas vezes, têm naquela porção a única refeição do dia, e o único momento em que serão atendidas com respeito e dignidade.
As marmitas que saem da Cozinha Solidária da Azenha sempre têm endereço certo. Cada porção chega quentinha a comunidades e bairros periféricos, ilhas, quilombos, associações e movimentos sociais.
Um ponto interessante é ver a força da presença de lideranças femininas nesses espaços, em especial mulheres negras. Elas representam a voz das comunidades.
Além disso, a Cozinha segue com o compromisso de servir refeições aos seus frequentadores tradicionais. Pessoas das mais distintas idades, gêneros, dimensões étnico-raciais, ocupações e histórias de vida adentram o local para receber sua refeição com muita atenção, sendo chamadas pelo nome.
Números que chamam a atenção
Somente no mês de maio, desde o início das enchentes na Capital gaúcha, a Cozinha Solidária de Emergência (essa nomenclatura se dá pelo período crítico, pois a Cozinha existe em POA desde 2022), foram produzidas 100 mil marmitas. Sim, 100 mil! Começou com 1.500 unidades/dia, e em algumas semanas, chegou às 4.000.
Para isso acontecer, tente imaginar em uma foto: 250 kg de arroz, 200 kg de carne, 130 kg de feijão, 180 kg de vegetais. Essa quantidade de ingredientes é preparada todos os dias. São mãos habilidosas e dedicadas, de cozinheiras(os) militantes do RS, SP, RJ, MG e apoiadoras(es), num trabalho que se inicia com a lavagem e corte dos legumes, no dia anterior, e só termina após a entrega da última marmita, na tarde do dia seguinte.
“A gente não quer só comida”
É indispensável lembrar que as Cozinhas Solidárias ligadas ao MTST, instaladas em diversas partes do Brasil no contexto da Pandemia, a partir de 2021, são uma resposta à situação de vulnerabilidade à qual muitas pessoas ficaram expostas.
O alimento é o ponto de partida para que as pessoas possam debater e se movimentar pelo direito à moradia digna em ambientes urbanos, numa ação que envolve outros movimentos sociais parceiros, como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Marcha das Mulheres e Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), entre outros. A defesa da Agricultura Familiar também está em pauta, pois grande parte dos insumos das Cozinhas Solidárias têm os pequenos agricultores como fornecedores.
A Cozinha Solidária da Azenha começou seu trabalho antes dessa tragédia ambiental – que, sabemos, é fruto de negligências de autoridades políticas, falta de medidas preventivas e de negacionismo climático. O RS é “a bola da vez”, mas esses fenômenos são cada vez mais frequentes no Brasil e em outros países, inclusive os desenvolvidos. Mas a mobilização da Cozinha segue forte e irá para além desses dias tristes, promovendo a segurança alimentar e o debate sobre moradia.
Todo meu respeito e admiração às e aos militantes, às apoiadoras e apoiadores que integram essa força tarefa que permanece para além das enchentes, comprometidos desde o prato de comida à luta por políticas públicas que mitiguem a falta de moradia.
Obrigado, amigo Marco Faria, pela minha foto na linha de produção, servindo uma marmita, e por tantos registros importantes que tornam a ação da Cozinha Solidária da Azenha visível à sociedade.
*Eduardo Borba é jornalista, mestre em Comunicação, especialista em Diversidade, Equidade e Inclusão.
Foto da Capa: Acervo do Autor.
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