Estava arrumando alguns velhos papéis (sim! Chega um momento da vida em que “arrumar”, na verdade, significa “desfazer-se”) e encontrei, entre antigas fotos e cartas manuscritas, uma que me fora destinada por um desconhecido chamado… Flávio Brayner (!), cujo estilo irônico lembra o meu (segundo me dizem!). Mas a caligrafia não era minha e continha, entre outros, o seguinte conteúdo:
“Prezado homônimo,
(…) Leio com frequência seus artigos e devo confessar minha mais profunda decepção com sua falta de compreensão do mundo atual: o senhor é, na verdade, um desvairado nostálgico da Atenas de Péricles, ou um Iluminista retardado, e acha, com seus artigos, que está conversando com os transeuntes que passam pelo Pórtico – distante, muito distante do mundo de hoje! Chega a ser ridículo, professor, imaginar que a POLÍTICA ainda seja o lugar onde os homens decidem os destinos da cidade através da palavra argumentada… Por favor! Imaginar que a MENTIRA seria banida do mundo comum através do simples confronto entre a palavra e a realidade à qual se refere… Tenha paciência! Pensar que a CIÊNCIA é a vitória da palavra esclarecida sobre o obscurantismo, a ignorância e a barbárie… Pelo amor de Deus! Crer que a EDUCAÇÃO seria suficiente – não para eliminar –, mas para minorar os efeitos e as ações dos genocidas, etnocidas, humanicidas… É muita ingenuidade! O senhor acredita realmente que, com base na GEOGRAFIA, todos nós seríamos convencidos da esfericidade da Terra? Minha Nossa! O senhor pensa mesmo que a RELIGIÃO tenha o sentido de alertar o homem sobre o que ele poderia ser e viver, caso ele se perceba como co-partícipe de uma comunidade espiritual? Que tolice! O senhor crê, realmente, que a profissão de PROFESSOR pode atrair alguém que tenha um pouquinho de juízo? Se toque! O senhor acreditou, de fato, que, uma vez ultrapassada a barbárie, a CULTURA (sobretudo aquela contida nos grandes clássicos) nos impediria de voltar atrás? Chega: desisto!(…)”.
A carta é bem mais longa e terminei por dobrá-la novamente e… guardá-la ali onde estava antes. Achei que era uma brincadeira que eu mesmo me fizera, alterando minha caligrafia. Mas não me vejo enviando cartas para mim mesmo e guardando-as para abrir num futuro distante! Talvez um amigo gozador ou um ex-aluno perspicaz e sarcástico que não teve a coragem de me dizer isto pessoalmente e de viva voz… Talvez, talvez…
É verdade que, como certas personagens da literatura, sou um inadaptado ao meu tempo. Não gostaria de voltar à Atenas da democracia aristocrática, mas gostaria muito que Péricles pulasse por sobre a História, chegasse até nós e refizesse sua Oração aos Mortos para, novamente, nos alertar sobre o que perdemos quando abandonamos a democracia. E estamos muito perto disso!
Todos os textos de Flávio Brayner estão AQUI.
Foto da Capa: Gerada por IA