No ano em que se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, no Teatro Municipal de São Paulo, é preciso aproveitar a efeméride, para compreender a sua real dimensão no âmbito cultural. Apenas uma pequena parcela dos arquitetos sabe que a arquitetura se fez presente. O público em geral desconhece este fato. Foi uma participação pequena e de pouca visibilidade.
Na República Velha, a arquitetura predominante era o chamado “Ecletismo Historicista”, no qual raramente se utilizava um determinado estilo oriundo da própria história da arquitetura (“Revivalismo”). Era adotado para enfatizar o caráter de determinados programas: estilos neorromânico ou neogótico, nos templos; neoclássico, neorrenascentista ou neobarroco, em prédios públicos etc. Mais comum era a mescla de estilos, o que gerou a denominação dada à arquitetura que predominava. Da primeira década do século à Primeira Guerra Mundial, o ecletismo historicista foi secundado pela chamada “Arte Nova”. No período da Primeira Guerra Mundial, novas vertentes se afirmaram no contexto latino-americano: as arquiteturas “neoindigenista” e “neocolonial”.
Isto se deu no momento em que se comemoravam os centenários das independências dos países latino-americanos. As arquiteturas neoindigenista e neocolonial foram vistas como genuínas manifestações de nacionalismo frente ao historicismo alheio como eram vistos os estilos de origem europeia, não ibéricos, então disseminados. Assim, como afirmou o professor Paulo F. Santos (1904-1988), na segunda e terceira décadas do século passado, foi adotada uma espécie de Doutrina Monroe para a arquitetura e outras manifestações de arte (SANTOS, 1981, p. 89). A primeira buscando referências nas culturas indígenas pré-colombianas, em especial asteca, maia e inca (presentes especialmente no México e Peru, que herdaram os remanescentes), enquanto a segunda voltava-se ao passado colonial hispânico e português (no restante da América de tradição ibérica).
No caso brasileiro, a vertente indigenista foi diminuta pela inexistência de um passado que justificasse seu emprego. Teve no pintor paraense Theodoro José da Silva Braga (1872-1953), seu iniciador, explorando motivos da cerâmica marajoara. Na arquitetura destacou-se o projeto vencedor do concurso para o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública (1935), concebido pelo arquiteto Archimedes Memória (1893-1960).
A arquitetura inicialmente chamada de “Tradicional”, voltada especialmente ao passado luso-brasileiro, teve como ponto de partida, Ricardo Severo (1869-1940), engenheiro português, radicado no Brasil em 1909, ao proferir palestra na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo, sobre “A Arte Tradicional no Brasil”, em 1914, passou a ser visto como o precursor desta manifestação que “incorporou um componente inédito no debate sobre a modernização da arquitetura no Brasil” (SEGAWA, 1997, p. 35). Na palestra, preconizou “a valorização da arte tradicional como manifestação de nacionalidade e como elemento de constituição de uma arte brasileira. Discorrendo sobre as origens portuguesas da cultura brasileira, Severo defendia o estudo da arte colonial como orientação para ‘perfeita cristalização da nacionalidade’. Severo não defendia uma postura propriamente conservadora”. (Idem, p. 35).
Importante aqui lembrar as palavras de Yves Bruand (1926-2011) sobre este estilo:
“Esse movimento (o estilo neocolonial) foi na realidade a primeira manifestação de uma tomada de consciência, por parte dos brasileiros, das possibilidades do seu país e da sua originalidade. Já assinalamos anteriormente (p. 25 a importância desse fenômeno sem o qual a arquitetura brasileira não seria hoje o que é.” (BRUAND, 2016, p. 52)
Esta vertente tradicionalista dominou o contexto da arquitetura brasileira na década de 1920, especialmente no Rio de Janeiro, sob a liderança do médico e historiador de arte pernambucano José Marianno Carneiro da Cunha Filho (1881-1946), diretor da Escola Nacional de Belas Artes, responsável pela denominação de “neocolonial”. Seu ativismo a partir de 1919, o levou a ser o ideólogo e incentivador frente aos artistas e arquitetos. Marcante foi a presença do estilo em pavilhões da Exposição que marcou as comemorações do Centenário da Independência, no Rio de Janeiro.
Despontaram na produção desta arquitetura, Heitor de Mello (1875-1920), Arquimedes Memória, Nestor de Figueiredo, Ângelo Bruhns (1896-1975) e Lucio Costa (1902-1998), dentre outros, no Rio de Janeiro, e o francês Victor Dubugras (1868-1933), no ambiente paulistano, este último especialmente em obras comemorativas ao centenário da independência do Brasil: Largo da Memória (1922), no centro de São Paulo, e o Rancho ou Pouso da Maioridade (1922), no Caminho do Mar, entre Santos e São Paulo. Paulatinamente o neocolonial teve reconhecimento oficial, e inúmeros prédios públicos foram concebidos nesta linguagem, vulgarizando o uso dos elementos ornamentais de gosto tradicional. Até mesmo Oscar Niemeyer (1907-2012), na periferia de Brasília, realizou tardiamente uma casa (1961) que é ainda associada a esta modalidade de arquitetura.
Na Semana de Arte Moderna de 1922, a arquitetura participou das exposições apresentadas no saguão, através de Antonio Moya (1891-1949) e de Georg Przyrembel (1885-1956). Em depoimento a Aracy de Abreu Amaral (1930), Luís Saia (1911-1975) afirmou que Antonio Moya foi “o arquiteto da semana”. (AMARAL, 1998, p. 151).
Mario da Silva Brito (1916-) explica como Moya veio a integrar-se na constituição do grupo modernista, que Mário de Andrade chamava de “Dragões do Centenário”:
“Nesse ano (referindo-se a 1921), é descoberto um arquiteto ‘bizarro, original, cheio de talento, sonhando e realizando coisas enormes’: Antonio Moya, poeta da pedra, no dizer de Menotti, que revelando-o, escreve: ‘representante mais puro das novas correntes estéticas, sente-se, porém, admiravelmente bem dentro de todas as escolas, ressuscitando o estilo manuelino com originalidade e graça, reproduzindo o clássico com profunda compreensão de suas massas harmônicas. Mas sua tortura de criar desborda, ansiosa, de fato, no desejo iluminado da criação nova, dando então aos seus projetos um alto senso subjetivo, fazendo que se reflita nos blocos do conjunto, nos detalhes mínimos, a significação do prédio, dando-lhe assim uma alma, um sentido que se percebe pela impressão que a mó arquitetônica nos causa. Ultimamente, os estudos de Moya, o jovem e brilhante arquiteto paulista, procuram resolver o problema capital de harmonizar a escultura com a arquitetura, fundidas ambas numa harmonia integral e íntima, de modo que uma resulte de outra naturalmente, sem acusar o aplicado, o postiço, o artificioso, o fútil. Essas preocupações bem demonstram o alto e profundo conceito que Moya tem de sua arte. Nela não é apenas um mero construtor, é um criador e como tal, um poeta da arquitetura” (BRITO, 1997, p. 309-310).
Antonio Moya era espanhol, andaluz e granadino, natural de Atarfe, radicado em São Paulo, formado primeiramente no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, e posteriormente pela Escola de Belas Artes (1933). Trabalhou inicialmente como desenhista de George Krug (1869-1918), tio de Anita Malfatti (1889-1954), do qual se tornou sócio em 1912, da firma Krug & Moya. Com a morte de Krug, em 1918, no ano seguinte, a empresa passou-se a denominar Moya & Malfatti. Antonio Moya foi citado por Menotti del Picchia (1892-1988) em uma homenagem póstuma, datada de 1949, como “o poeta da pedra”, termo que teria sido cunhado por Mário de Andrade (1893-1945) para referir-se a ele. Apresentou dezoito trabalhos na Semana de 22. Explorou nos trabalhos expostos em 1922, desenhos que agradaram aos futuristas.
O outro participante da Semana na modalidade da arquitetura foi Georg Przyrembel, polonês da Alta Silésia, que estudou arquitetura na Alemanha e depois veio para o Brasil, em 1912 ou 1913. Se dedicou a estudar a arquitetura mineira, produzindo projetos no estilo neocolonial. Na Semana de 22, apresentou projeto no estilo neocolonial, de uma casa na Praia Grande, denominada de “Taperinha”. A maquete da casa ficou exposta no meio do saguão do Teatro Municipal durante o evento, segundo depoimento de Yan de Almeida Prado, no Suplemento Literário, do jornal O Estado de São Paulo, de 14 de abril de 1962, intitulado “Novos depoimentos sobre a Semana de Arte Moderna” (AMARAL, Op. Cit., p. 193). Na década de 1930, neste mesmo estilo, projetou o novo convento e Basílica de Nossa Senhora do Carmo (1934) e o Palácio da Boa Vista (1938), em Campos do Jordão, em estilo medieval, para a moradia oficial dos Governadores do Estado de São Paulo.
Aracy Amaral diz que se examinarmos os projetos apresentados pelos dois arquitetos, veremos que “a inventividade poética de Moya ressalta diante do projeto do arquiteto polonês. (…) tomou liberdades inauditas, talvez por partir mesmo da impraticabilidade das ideias com que sonhava. O momento real da arquitetura, mesmo para aqueles que então se consideravam ousados, era o neocolonial amaneirado, prontamente consagrado pela oficialidade” (Idem, p. 151).
A mesma autora diz que, exceto a residência datada de 1921 (de caráter mediterrânico ou neohispânico), nos demais projetos apresentados por Moya, o neocolonial não transparece. Nos projetos para um “Mausoléu” e um “Templo”, inspirados em grandes edificações palacianas ou religiosas da Antiguidade no Oriente Médio, ou com templos pré-colombianos no México (AMARAL, op. cit., p. 154). Chama a atenção de Amaral a qualidade da expressão gráfica de Moya. Segundo ela, “extremamente bem desenhados, um mestre do nanquim” (Ibidem, p. 154). Dos trabalhos, um a intrigou. Trata-se de um “Túmulo”, “de linhas modernas, em seu despojamento e síntese, encimado pelo busto de um índio hercúleo” (Ibidem, p. 154). Aracy Amaral afirmou que Moya teria possivelmente influenciado Victor Brecheret (1894-1955), desde que este retornou de Roma ao Brasil, em 1919.
Segundo ela “o suave expressionismo muscular de Brecheret, com efeito, cederia lugar à estilização e à linearidade nesses anos em que aqui trabalhou e antes, portanto, de seu retorno a Paris” (Ibidem, p. 155). Tiveram contato, comprovado, por exemplo, no desenvolvimento do “Monumento às Bandeiras”, de Brecheret, cuja parte arquitetônica é da autoria de Moya, inaugurado em 1954 (Ibidem, p. 155). Na sua produção posterior, usou especialmente referenciais de linguagem pré-colombiana mesclada com um geometrismo de vertente mourisca, trazido de sua região natal.
Ao longo da sua trajetória realizou projetos em diversos estilos, motivo pelo qual, certamente foi vista como irrelevante a sua produção arquitetônica, embora tenha sido premiado pela Prefeitura de São Paulo, pela construção de uma casa de estilo normando, à Rua Itápolis, no bairro do Pacaembú. Aracy Amaral finaliza dizendo que “De qualquer forma, naquele momento histórico, na Semana de 1922, Moya foi, indubitavelmente, o elemento destruidor na seção de Arquitetura, com seus projetos plenos de atmosfera, revolucionários como concepção por seu caráter de rompimento com a convenção” (Ibidem, p. 157).
Posição contrária defende Yves Bruand. Para ele, a Semana de 22 foi a prova mais evidente que a falta de coerência do evento estava na área da arquitetura
“Recorreram, então, a um espanhol radicado em São Paulo, Antonio Garcia Moya, autor de casas inspiradas na tradição mourisca espanhola, que, em suas horas livres, colocava no papel de
senhos de uma arquitetura visionária que agradava aos futuristas por sua fisionomia extravagante. Nada de válido poderia daí resultar e torna-se difícil caracterizar melhor a diferença entre o caráter puramente especulativo e gratuito dos projetos visionários, fortemente marcados por um cunho passadista e as necessidades concretas, que o arquiteto jamais pode abandonar… Portanto, de um ponto de vista objetivo, não exerceu a Semana de Arte Moderna qualquer influência direta sobre a arquitetura” (BRUAND, Op. Cit., p. 63).
Carlos Lemos escreveu que “os arquitetos que dela participaram não tinham o mínimo conhecimento do que se fazia de moderno pelo mundo em matéria de racionalismo estrutural” (LEMOS, p. 133).
Quase meia década depois, surgiram as primeiras iniciativas no sentido de afirmar o Movimento Moderno na arquitetura brasileira. Primeiramente com os artigos pioneiros a respeito da nova arquitetura, publicados em 1925, com vinculações com as vanguardas europeias. “Futurismo¿”, escrito pelo ucraniano Gregori Warchavchik (1896-1972), no jornal Il Piccolo, da colônia italiana, foi a primeira ação, em 14 de junho de 1925. Seguida pela publicação de “A arquitetura e a estética das cidades”, escrito por Rino Levi (1901-1965), publicado no Estado de São Paulo em 15 de outubro de 1925. Dezesseis dias depois, o Correio da Manhã do Rio de Janeiro, publica, em 1º de novembro de 1925, o artigo de Warchavchik, traduzido para o português, agora intitulado “Acerca da Arquitetura Moderna”.
Depois do discurso, a prática. Warchavchick passaria a ser considerado o pioneiro da arquitetura moderna no ambiente paulistano e brasileiro, ao conceber a sua residência à Rua Santa Cruz, em Vila Mariana, em São Paulo, visitada em 1929, por Le Corbusier, quando de sua primeira vinda à América do Sul. Gregori Warchavchik, Flávio de Carvalho (1899-1973) e Rino Levi se tornariam, de fato, os primeiros modernos paulistanos.
NOTAS:
AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Editora 34, 5ª edição, 1998.
BRITO, Mario da Silva. História do modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 6ª edição, 1997.
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Editora Perspectiva, 5ª edição, 2016.
LEMOS, Carlos A. C. Arquitetura Brasileira. São Paulo: Ed. Melhoramentos / Ed. da Universidade de São Paulo, 1979.
SANTOS, Paulo F. Quatro séculos de Arquitetura. Rio de Janeiro: IAB, 1981.
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
*Texto original publicado aqui na Sler em 16 de setembro de 2022