Então, se encontraram; pra botar a conversa em dia.
— Fratura na cabeça do fêmur, deslocamento da bacia e luxação do ombro. Chega ou quer mais?
— Puxa vida! Quanto tempo para a recuperação?
— Uns seis meses; nessa idade, já viu, né?!
— Mas como aconteceu? Foi atropelada? Aqui quase não tem carro.
— Surreal, cara. Vindo de onde veio, não dá pra acreditar.
— Conta logo, cara…
A cidade
A festa literária, como em todos os anos, era realmente uma festa. Tanto para a simpática cidade colonial, à beira mar, como para os frequentadores também : escritores, cronistas, artistas, jornalistas, livreiros, poetas consagrados e eteceteras. Ilustres desconhecidos, de todos os gêneros, uns deslumbrados, outros revoltados, em busca de suas chances; e mais os leitores contumazes, os eventuais e os socialmente interessados, já que a mídia, em peso, se fazia presente. Adolescentes borboleteando por todos os lados, pela manhã, à tarde e à noite; senhoras e senhores, de idades pouco, muito e mais que muito avançadas, também, em perceptível entusiasmo, apenas um pouco mais devagar. Gostos para todos os gostos, para os locais e para os turistas, com lugar até para quadros de asas de borboletas azuis, menestréis e malabares. Uma performance coletiva.
O Auditório
A noite prometia. Havia, no ar, um clima de ansiedade e expectativa quanto ao próximo debate.
“Esse lugar tá ocupado?” “Parece que sim” “Por favor, esses dois lugares estão vagos?” “Não sei, havia alguém que saiu e deixou esse casaco marcando os lugares” “O senhor está aguardando alguém?” “Nããão!” “Então tão desocupados esses lugares!?” “Não sei, meu caro, só tem um casaco marcando os dois” “Ei, tá ocupado aí?” “Talvez, pode ser” “Mas não é justo, já tá cheio e esses lugares vazios..!” “É a mania de guardar lugar! Onde já se viu isto?! “ É coisa de subdesenvolvido!” “É falta de educação, isso sim. Devia ser proibido” “Tem alguém sentado aí? “Alguém, não tem, mas um casaco, sem alguém dentro, tem” “São seus, esses lugares?” “Não, são da festa.”
— O debate anterior, recém-terminado, fora muito marcante: uma escritora jovem, bonita e charmosa, — suas qualidades mais que divulgadas, em prosa e fotos, nos jornais e nos suplementos literários, — e um escritor, também jovem, promessa em sua terra de origem. Ele, de fato, escrevia bem, falava bem e usava, ainda melhor, recursos marqueteiros para encantar o público, principalmente o feminino: queria, porque queria, agora, ser pai; era bem apessoado e solteiro, o que causou o maior alvoroço entre a ala jovem feminina da festa; teceu, ainda, loas à pátria mãe gentil que o hospedava : sucesso!, vendeu todos os seus livros que a livraria do evento pusera à venda. Ela, por sua vez, confirmou ser jovem, bonita e charmosa, como as alas jovem e velha, — as masculinas — aguardavam. As ideias, é verdade, se revelaram — as que se permitiram inteligíveis, — meio caóticas, mas também já era querer muito! Para os homens, era suficiente como estava; principalmente as cruzadas de pernas…
— Sei que o próximo encontro, desde a divulgação do evento, era o mais aguardado e comentado: ele, um escritor judeu, israelense, tido como polêmico, direto, sem deixar de dizer o que tinha que dizer, não importava quando ou para quem; ela, mais jovem, era uma escritora de romances políticos, árabe, oriunda do maior país muçulmano do Oriente Médio.
— Então, tinha tudo para ser o grande embate da festa, pronto para incendiar o palco e a plateia; até o número de seguranças, por via das dúvidas, havia sido reforçado.
E mais
Comentários e troca de informações eram ouvidos, se entrecruzando. Perceptível a divisão de expectativas: os mais velhos, os judeus principalmente, já sabiam e trocavam certezas quanto à razão indiscutível do que o israelense iria falar; os mais jovens, a esquerda festiva, animada e excitada, não parava quieta: levantavam-se, falavam com várias filas adiante e atrás, prontos para oferecer suas palavras de ordem àquela audiência burguesa e careta; três jovens adolescentes, bonitas, bem maquiadas, desfilavam kafias como xale, disputando charme e elegância.
“Está ocupado?” “ Sei lá, pô! Deve ter ido ao banheiro” “Não esquenta, meu, eu só perguntei” “Não é possível, se demorar mais um pouco, vou sentar no peito!” “Não é lugar numerado, é muita cara de pau!” “ É sacanagem, isto sim…” “ Só no Brasil mesmo..!” “Invadir a praia deles” “Esses lugares estão vagos?” “Não, minha filha, acho que não” “ Mas cadê o dono? Já vai começar” “Não sei, não é problema meu”.
— A luz começava a baixar sua intensidade. Os organizadores e o mediador adentraram o palco e sentaram-se. Anunciaram os escritores da noite, que, cada um por seu lado, entraram, e se dirigiram ao centro. Olho no olho, apertaram as mãos e, se sentaram, sem contudo soltarem as mãos ou desviarem o olhar. Assim ficaram. Via-se que trocavam algumas palavras, na deles, nada a ver com o que acontecia no entorno, onde as pessoas procuravam se ajeitar em busca da melhor posição para testemunhar sangue, suor e lágrimas.
Na fila com dois lugares vagos, e um casaco sobre eles, a situação começava a deteriorar: pessoas começavam a — devagarinho — se aproximar, aglomerar e altercar com os que estavam sentados, quando uma senhora, — magrinha, cabelos totalmente brancos, muito bem vestida —, vinda da entrada principal, num passinho miúdo, passou diante da primeira fila em frente ao palco e subiu os quatro degraus que levavam a dois cobiçados lugares. Colocando a mão no braço do mais próximo candidato àquelas poltronas, solicitou, delicadamente:
“Por favor, poderia me alcançar o meu casaco que eu esqueci, na outra palestra?”
Caos
Foi como se um “liberou geral!” tivesse soado para a intelectualidade ali encastelada. Os mais afastados tentavam pular algumas poltronas; gritos histéricos eram ouvidos, acompanhados de empurrões generalizados; gente caindo no colo dos que, pacatamente, aguardavam o início e, outros, tropeçando e caindo entre as pernas dos sentados e o encosto das poltronas da fila em frente, ficando entalados nas mais ridículas posições. “Esse lugar é meu” gritava uma senhora, com a peruca descaída e o casaco já rasgado” “Daqui não saio, quero ver quem vai me tirar?” “ Que marido é você?” “Reage, ele está me agredindo!” “ Eu cheguei primeiro, sua bruaca velha!” “Intelectuais unidos jamais serão vencidos!” gritava uma jovem, com a kafia em frangalhos.
— Então, em meio àquela baita confusão , vovó foi atropelada pela cultura ensandecida. Tudo por causa do casaco que havia esquecido na sala. Vê se pode..!
Naquela noite a última palestra não aconteceu.
Do lado de fora do auditório, no boteco Parnaso Tropical, em meio a turistas e locais, um casal conversava animadamente, mãos dadas, olho no olho, riso fácil e alto, embalados pela grande descoberta literária da temporada: a caipirinha de limão, com cachaça de Paraty. Ele, um escritor judeu israelense e ela, mais jovem, uma romancista política, árabe, muçulmana.”
Shalom . É possível, sim. E é por aí…
Jacob B. Goldemberg é arquiteto e professor. Já publicou os seguintes livros: Arquitetura: Espaço-Vida (1978), Arquitetura, Escritos (1998), O Essencial do Livro dos Livros – Contocrônicas, umas tantas (Ebook - Amazon) e Sobre Judeus, Hebreus e um certo Jesus (2024).
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