O verso “os olhos são a janela da alma” é tão antigo que já não se sabe quem foi o poeta que o formulou por primeiro. Se ele sublinha especialmente a importância dos olhos, também aponta para o papel das janelas. São elas que dão acesso, nesse caso, a algo tão profundo quanto a alma humana.
Você já parou para pensar o que seria de nossas vidas sem essa possibilidade de olhar para fora e, vice versa, ser espiado? Pois nossa primeira morada, as cavernas, não tinha nem portas, o que dirá de janelas. Tinham acessos, frestas, que permitiam alcançar o oco da montanha. Dois mundos separados, o de dentro e o de fora, que não se comunicavam. Dentro, o mundo das sombras de Platão, gerando fantasias. Nenhuma possibilidade de ver desde dentro ou ser visto desde fora. Era preciso entrar ou sair para ver e ser visto.
Foram precisos muitos milênios para que as primeiras casas, fora das montanhas, fossem construídas pela humanidade. O conceito da caverna foi junto com elas: não abriram janelas. Diz o Google que as primeiras só foram abertas há 4 mil anos na Pérsia, quebrando, finalmente, o binário dentro/fora.
Fiquei pensando no sucesso que a primeira janela deve ter feito. Deve ter sido igual ou maior que o lançamento do Windows ou do Iphone. Uma verdadeira revolução no modo de viver e se comunicar com o mundo. Vizinhos passaram a conversar sem sair de casa, ladrões encontraram novas possibilidades de acesso, amantes agora podiam se evadir antes do flagra ou, mais poético, fazer serenatas. Mas, principalmente, luz e ar puro passaram a entrar nas casas. A vida nunca mais foi a mesma.
A humanidade pegou gosto pelas janelas e elas foram aumentando de tamanho à medida que a técnica permitia abrir vãos cada vez maiores nas paredes. O ápice chegou com a exuberância das catedrais góticas. Nelas a estrutura de suporte do edifício se independizou das paredes que, agora, livres de suportarem cargas, puderam ser feitas de vidro. Vitrais coloridos, na verdade. Mas ali já não era para trazer o exterior para dentro da nave, mas, sim, a divindade através da luz colorida da fé. Não se olhava para fora, não se espiava para dentro, só Deus tinha essa permissão.
O investimento para alcançar tal ousadia era imenso. Só a poderosa Igreja podia fazê-lo. A arquitetura civil continuaria, por muitos séculos ainda, levantando paredes portantes. Densas, com mais massa do que aberturas.
O uso do ferro na construção civil, a partir da Revolução Industrial do século XVIII, mudou tudo. Desde então ficou mais fácil livrar as paredes de sua missão histórica. O ferro oferecia muito mais facilidades construtivas do que os mestres tiveram para fazer as antigas catedrais da Idade Média. Com resistência à tração, como a madeira, mas muito mais resistente do que ela, substituiu com vantagem os arcos na abertura de vãos maiores.
Já falei aqui que foram os engenheiros os primeiros a explorarem o ferro na construção de pontes, estações ferroviárias, mercados e pavilhões de feiras. E o fizeram como verdadeiros arquitetos, perseguindo uma estética inspirada na precisão matemática do cálculo estrutural, outra novidade da época. A Torre Eiffel, em Paris, é o melhor exemplo do que estou falando.
A lição trazida pelo gótico, então, foi retomada: estrutura é uma coisa, vedação outra. As fachadas de qualquer imóvel, vejam só, poderiam ser formadas por janelas de tamanhos antes inimagináveis. Não demorou muito, em termos históricos, para o arquiteto alemão Mies van der Rohe, em 1919, ousar idealizar um edifício totalmente de vidro. Não era exatamente um projeto, era um conceito revolucionário para a cidade. Nunca foi construído, mas o espanto foi geral. A novidade foi posta em prática, duas décadas depois (1937), quem diria, no Rio de Janeiro, no atual Palácio Capanema. O Brasil tem disso, corre na frente em algumas coisas, deixa muitas outras para trás.
A novidade se espalhou, com força mesmo, somente no pós-guerra. As fachadas totalmente envidraçadas passaram a ser conhecidas, pela sua leveza, como cortinas de vidro. Entretanto, quebrar a barreira dentro/fora trouxe problemas insuspeitos. Perder a proteção da intimidade dos lares e escritórios passou a ser um problema. Mies, radicado nos Estados Unidos por causa da guerra, foi processado pela casa totalmente de vidro que fez para Edith Farnsworth, acusado, justamente, de falta de privacidade para a proprietária.
Nasceram então os vidros escuros ou espelhados que permitem olhar de dentro para fora, mas não ao contrário. Os edifícios, vistos de fora, se tornaram grandes monólitos indecifráveis. Não se tem ideia do que se passa lá dentro, quantos andares tem, como é sua compartimentação, pois não têm a escala humana que as janelas oferecem.
Leveza da estrutura, razões econômicas e simbólicas que não sei definir – talvez a semelhança com um cristal reluzente –, fez com que esses edifícios passassem a ser ambicionados por corporações poderosas e, claro, pelos que querem ser confundidos com elas.
Espalhados por todas as latitudes, as torres de cristal se transformaram em verdadeiras estufas nos climas quentes. Um aluno estagiário num desses edifícios me contou que o ar condicionado funciona, no frio, o ano todo. No verão não dá conta. O desperdício energético para construir e fazê-los funcionar é absurdo.
Curiosas voltas que a humanidade dá. Olhando de fora, os edifícios de vidro, individualmente, podem ser vistos como grandes rochas. Agrupados se parecem com montanhas habitadas. Não se vê o que acontece lá dentro. Não é possível a conversa com o lado de fora. A comunicação é puramente visual. Os vidros são fixos, não entra a brisa e, nos de alto padrão, nem o ruído.
Por outro lado, seus inquilinos vêm demais, quase tudo. A visão se perde. Não há enquadramento, não há lugar de mirada, aquele lugar de onde gosto de olhar. A paisagem pouco muda em qualquer ponto da fachada do edifício. Não se acham janelas na grande janela que cresceu até deixar de existir.
A visão que se tem, nos andares mais altos, é a da águia sobrevoando a cidade em busca da sua presa. Os sapiens agora programam sua atividade lá fora não com a ajuda da fantasia das sombras, mas com o olhar cristalino. A caça, lá embaixo, já não são bisões, são cidadãos. Em vez de flechas, capital. Talvez seja isso que chamam de evolução.
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