Nestes tempos de tentativas, e mais do que isso, de inaceitáveis ações de censura por parte de secretarias de educação do sul do Brasil ao O Avesso da Pele, a premiada e aclamada obra de Jeferson Tenório (foto da capa), me veio de imediato à lembrança o conto “Um general na biblioteca”, do Italo Calvino.
Nessa narrativa escrita na metade do século XX, é nomeada uma comissão de militares para avaliarem livros acusados de conterem mensagens subversivas no acervo de uma biblioteca. O bibliotecário recebe a comitiva e vai mostrando um a um os volumes denunciados.
Os militares passam a ler na biblioteca e, se no princípio estão desconfiados e imbuídos na missão de encontrar os conteúdos que buscavam, com o tempo passam a se envolver e mergulhar na complexidade de cada livro e vão experimentando o prazer da leitura. O que parecia à distância facilmente catalogável como subversivo se mostra mais cheio de nuances, de camadas e mais camadas de significados, passível de relativização e de diversas e ricas interpretações.
O bibliotecário, ao perceber o que acontecia, vai indicando para eles livros e mais livros, de tal modo que o general e sua equipe ficam muito mais tempo do que o previsto. Vão sempre dizendo aos seus superiores que lhes deram essa missão que precisariam prolongar a tarefa por um período indefinido a fim de que pudessem concluir tudo com segurança.
Ou seja, por eles, não sairiam nunca mais dali.
Sugiro a todo aquele que queira tomar partido nessa discussão sobre a adequação ou não ao ambiente escolar que leia na íntegra O Avesso da Pele. É um livro que traz na sua história, didaticamente, todos os mecanismos de construção do racismo, tanto na dimensão social como na psicologia e no sentimento de quem sofre essa chaga que deveria envergonhar a todo mundo que se diz humano.
A sexualidade, usada como argumento para banir o livro das escolas, está ali para mostrar como, também nesse aspecto, as distorções e projeções sociais racistas sobre os corpos são introjetadas e, portanto, são também passíveis de serem criticadas e modificadas.
Toda essa aula sobre como podemos entender e, a partir disso, contribuir para construir um mundo antirracista, se apresenta numa narrativa envolvente e literariamente muito bem construída. O reconhecimento de uma das premiações mais importantes da literatura brasileira, o prêmio Jabuti concedido pela Câmara Brasileira do Livro, ou as traduções de O avesso da pele para dezesseis idiomas atestam que esse romance é muito maior do que qualquer redução descontextualizada como a que estão tentando fazer com ele.
Vivemos um mundo que, em diversas manifestações, sobretudo da juventude, não suporta mais o desrespeito às diferenças. Combate ao racismo compõe o enredo de um dos mais importantes romances contemporâneos brasileiros. Seria certamente uma das leituras que o bibliotecário sutilmente colocaria sobre a mesa para abrir a cabeça dos generais na biblioteca.
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Foto da Capa: Wikipedia