Qual régua é mais precisa para medir um filme que colocamos na lista dos 10 mais da vida? Ok, o número é impositivo de injustiça e remorso. Mas essa é a graça de fazer listas. Essa medida seria na escala numérica, considerando a quantidade de vezes em que o filme foi visto e revisto? Ou na escala afetiva, dimensionada pelo impacto do primeiro contato, no arrebatamento que permanece pulsando no correr dos anos mesmo com poucas ou nenhuma revisão?
Muitas listas fiz e refaço combinando essas duas medidas. Posições se alternam e títulos entram e saem ao sabor das experiências estéticas e vivências acumuladas na quilometragem que aumenta rápido demais. O Poderoso Chefão é um que nunca perdeu sua vaga no time, garantida tanto com dezenas de sessões saboreadas quanto pela reverberação ativada no primeiro contato renovada a cada encontro. Os mais recentes foram dois, diante da reluzente cópia restaurada em 4k exibida nos cinemas em razão dos 50 anos da estreia do longa-metragem dirigido por Francis Ford Coppola, em 14 de março de 1972.
Por enquanto, o épico mafioso está de volta ao primeiro lugar na minha volúvel seleção, na qual craques e posições se alternam e um enorme banco conta com reservas estrelados prontos para entrar em campo a qualquer momento. Minha conexão com O Poderoso Chefão começou ainda criança, na televisão, nas exibições da Globo com cortes e picotadas por comerciais. Depois, seguiram-se revisões nas fitas VHS, uma que outra chance no cinema, em cópias já gastas e opacas, em DVD e Blu-ray, já na versão restaurada que passou também pelos cinemas. Até finalmente ganharmos de presente pelos 50 anos da obra-prima a nova restauração em 4K. As quase três horas com a família Corleone passam como um sopro, sempre.
O filme que quase não existiu
Para marcar o cinquentenário do clássico, além do relançamento nos cinemas e de novas edições em mídia física, estreou na plataforma de streaming Paramount+ a série “The Offer”. O título faz referência a uma frase dita no filme, na linha missão dada pelos Corleone é missão cumprida, por bem ou para infortúnio alheio: “Vou fazer uma oferta que ele não pode recusar”. Contei os dias para ver a série, realizada com base no livro de memórias do produtor Albert Ruddy, o homem que fez tudo acontecer. A novidade para muitos aqui está numa subtrama que, compreensivelmente, é um tanto negligenciada na exaltação cinéfila: o envolvimento direto da máfia na produção. É a versão de Ruddy, cabe destacar, e sobre ela pode ter as camadas de distorção que dão lustro aos registros biográficos embebidos na ficção.
Os primeiros dos 10 episódios me deixaram com o pé atrás, pela representação caricatural dos chefões mafiosos e pelo destaque na ascensão de Ruddy, do enfado como burocrata em uma empresa de tecnologia ao ingresso na Paramount sob a proteção do lendário Robert Evans, chefão do estúdio naquele começo dos anos 1970. A coisa começa a ficar boa quando entram em cena, por iniciativa de Ruddy e desconfiança de Evans, duas figuras com sangue italiano que deram liga de cara: o escritor Mario Puzo, autor do livro despontando como best-seller, e Coppola, diretor emergente que buscava se manter à margem da grande indústria cinematográfica com sua própria linha de produção focada em cinema autoral. Mas, como todos nós, Coppola tinha boletos a pagar e topou a empreitada, dividindo o roteiro com Puzo – outra imposição de Ruddy, que buscava garantir uma atmosfera mais fidedigna ao universo retratado.
Quem não gostou das escolhas foram os executivos do grupo controlador da Paramount, com sede em Nova York. Teve início uma ferrenha disputa por cada palmo do controle sobre o filme e sobre cada dólar do orçamento curto. Os executivos não queriam Marlon Brando como Dom Corleone, pois o ator era visto como veneno de bilheteria já em fim de carreira. Colocar em outro papel protagonista o novato como Al Pacino, nem pensar. A série avança sobre essa tensão de forças entre mentes criativas querendo fazer história e executivos vendo nas planilhas que podiam embarcar numa furada milionária. Em meio a essa disputa, mais lenha na fogueira era jogada por Joe Colombo, capo da máfia nova-iorquina, já ressabiado com o sucesso do livro de Puzo. Colombo achava que o filme reforçaria o preconceito contra os Ítalo-americanos ao associá-los com o crime organizado.
Amigão dessa turma, o cantor Frank Sinatra movia seus contatos lícitos e nem tanto para sabotar a produção, por se ver representado no astro do rádio e cinema apadrinhado pelos Corleone. Colombo ameaçava barrar o filme com sua influência junto a políticos e sindicatos e na base da força bruta. Acabou convencido por Ruddy de que o foco seria na história de superação de um imigrante italiano que movia todas as forças para proteger sua família e vencer na vida na terra das oportunidades. A violência e as atividades criminosas seriam consequências menores na jornada de perseverança e afeto. Bingo! Eis que O Poderoso Chefão, ao reproduzir o modus operandi da máfia, detalhando figurino, culinária, cadeia de comando e estrutura patriarcal das famílias, sem deixar de empilhar cadáveres pelo caminho, acabou por ditar um padrão de visual e de comportamento para os integrantes da cosa nostra. A bilheteria recorde, o inovador modelo de distribuição que a Paramount criou para faturar mais e os três Oscar conquistados, incluindo o de melhor filme, simbolizam o começo de uma nova era no cinema.
O Poderoso Chefão, além do que representa como arte e negócio, é um porto seguro a qual podemos recorrer sempre que quisermos nos reencontrar com os melhores anos de nossas vidas.