Que economia propõe a esquerda? Na plataforma do primeiro programa que levou Lula ao poder em 2002, à esquerda, três pontos fundamentais. O primeiro era a “implantação de um modelo de desenvolvimento alternativo que tem o social como eixo”, o que dependeria da “democratização do Estado e das relações sociais”. A justificativa é que construir um país economicamente mais justo dependia, na visão da esquerda da época, de um novo contrato social para “beneficiar os setores historicamente marginalizados e sem voz na sociedade brasileira”.
O segundo era “desprivatizar” o Estado, o que significava tirá-lo das mãos dos poderosos: “Desprivatizar o Estado implica também um compromisso radical com a defesa da coisa pública. A administração deixará de estar a serviço de interesses privados, sobretudo dos grandes grupos econômicos, como até agora ocorreu”. A justificativa era que a esquerda defendia a “presença ativa e a ação reguladora do Estado sobre o mercado, evitando o comportamento predatório de monopólios e oligopólios”, o que é notável, haja vista o poder enorme do mercado junto não apenas a sociedade, mas como lobby de poder junto aos demais poderes. Para isso, defendia “a boa experiência do orçamento participativo nos âmbitos municipal e estadual”, desejando “estimular a ampliação do espaço público, lugar privilegiado da constituição de novos direitos e deveres, o que dará à democracia um caráter dinâmico”. É por essa razão que incluímos seção relativa à agenda que inclua o ensino do funcionamento do Orçamento Participativo junto a escolas, entidades, associações.
O terceiro era a defesa de uma política tributária justa, com o cumprimento do orçamento e novos critérios de financiamento da atividade econômica que respeitassem as peculiaridades regionais. Mas o objetivo do programa de esquerda não é o desenvolvimento econômico somente, mas do par desenvolvimento econômico e justiça social. É um programa que coloca o desenvolvimento econômico a serviço do combate das desigualdades de raça e gênero, entre outras. Isso pode ser visto na meta 23 que diz:
“A agroindústria é hoje um dos maiores bens do Brasil e deve ser incentivada, inclusive por seu papel estratégico na obtenção de superávits comerciais. Mas não aceitamos a ideia daqueles que acreditam ser suficiente o Brasil firmar-se como grande e eficiente produtor de commodities agrícolas, para serem industrializadas, embaladas e rotuladas em outros países. Nosso governo tratará de estimular a produção voltada para o mercado internacional, sem descuidar da agricultura não diretamente voltada para a exportação, que será fortalecida com a Reforma Agrária e a agricultura familiar. Isso é fundamental para incluir socialmente milhões de brasileiros”.
Aqui, outra característica notável é que o programa da esquerda à época era crítico das commodities agrícolas para privilegiar a reforma agrária que beneficie a agricultura familiar. Isto é feito, segundo o documento, “no que se refere à produção de bens agrícolas e alimentares, geração de emprego e renda, preservação da cultura do campo e fortalecimento da identidade da organização social rural. Nesse sentido, o programa propunha estimular o crescimento socioeconômico da Agricultura Familiar, com apoio à comercialização e à agroindustrialização, ampliando e melhorando as condições de acesso a políticas de financiamento estáveis, à assistência técnica e à extensão rural, visando um novo modelo de desenvolvimento rural sustentável. O programa deseja um novo modelo sustentável e de compromisso social, mas terá conseguido isso?
A resposta é positiva, mas é preciso verificar primeiro em que se baseava esse modelo ao longo dos governos Lula. O motivo é que também a esquerda cedeu ao longo do tempo de seu programa econômico original pela pressão de mercado. No passado, mais do que no hoje, o programa considerava um erro a busca pelo equilíbrio macroeconômico e a abertura para as forças de mercado. Sua crítica ao governo anterior era justamente que isso produzia instabilidade cambial, juros e enfraquecimento das exportações. Agora, a redução destes efeitos é um dos objetivos do programa de governo. No passado, era um programa que apontava para a defesa da justiça ambiental para que as novas gerações possam ter direito a terem recursos naturais renováveis. Entre os efeitos dessa política, do passado ao presente, o estudo intitulado “Dimensões da economia brasileira: renda, emprego e desigualdade nos governos Lula a Bolsonaro” do Instituto de Pesquisas Econômicas da Unicamp (disponível aqui) afirma que o argumento defendido pelos liberais de que “existe contradição entre busca do crescimento econômico e maior igualdade” é equivocado, “nos governos Lula, o PIB real ampliou-se em 37% em conjunto com a redução de desigualdades.” Além disso, contrariando a afirmação que diz que o governo de Jair Bolsonaro foi prejudicado pelo contexto mundial, os autores afirmam que “o crescimento anual médio do PIB com Lula foi de 4,05%, superior à média mundial de 2,73%. O contrário aconteceu no governo Bolsonaro. O crescimento anual médio do PIB com Bolsonaro foi de 1,12%, inferior à média mundial de 1,95%.” Além disso, afirmam também os autores que “nos governos Lula ocorreu ampliação de 95% no volume de vendas do comércio, que estagnaram no governo Bolsonaro.” O estudo ainda aponta diversos indicadores em que o governo Lula foi superior ao de Bolsonaro. Se a receita da esquerda de desenvolvimento econômico aliada ao combate da desigualdade apresenta resultados positivos, por que a direita e os mercados insistem em atacar as medidas do atual governo no campo econômico?
É preciso considerar diversos fenômenos. O primeiro é que a principal medida recente do governo de Lula, a de reforma da faixa de isenção do Imposto de Renda, é atacada por inúmeros economistas de direita como Maílson da Nóbrega por entenderem constituir uma ameaça ao equilíbrio fiscal. O que significa, na opinião dos críticos, que somente os pobres devem pagar a conta das dívidas do Estado. Esta atitude não indica que atingimos o que a escritora Nancy Fraser denomina de Canibalismo Canibal? Isto não significa que o capitalismo em desenvolvimento no Brasil está destruindo de forma galopante as esferas da vida, principalmente aquela que zela pela defesa da solidariedade social? Para a esquerda, os diversos setores econômicos, o capital financeiro, o agronegócio e o capital imobiliário, estão destruindo as relações humanas, as riquezas da natureza, “sugando a nossa capacidade de cuidar uns dos outros e destruindo a prática política”. Aqui, o importante é assinalar que o projeto econômico da direita tem apetite voraz e atua na direção da destruição do país. A recusa de benefícios para as classes populares revela que o capitalismo brasileiro se transformou em canibal, ele devora seus trabalhadores e com isso cria uma sociedade onde a desigualdade se reproduz contrariamente aos fins do estado de bem-estar social. Lutar contra os avanços sociais significa retirar do consumo milhares de cidadãos, o que é outra forma de canibalizar atores sociais imprescindíveis para o desenvolvimento econômico e para o próprio funcionamento do capitalismo.
O segundo é o fato de que não é necessário lembrar que as riquezas naturais têm sido retiradas por grandes empreendimentos com o apoio do Estado, tendo sido responsáveis, inclusive, pelo agravamento dos efeitos da enchente de 2024 no Rio Grande do Sul. Para o capital, agora só interessam os bens e poderes públicos que podem lhes fornecer infraestruturas materiais para acumulação, o que, também nos termos da autora, colabora para devorar a própria democracia, e por esta razão, para a autora, é preciso “superar o reducionismo econômico e construir uma visão ampliada do socialismo, sem repetir as experiências que falharam no século XX”. Aqui, o ponto que considero central é que, no capitalismo atual, as pessoas não são importantes. Voltarei a este ponto adiante. Não há equilíbrio entre o desenvolvimento econômico que assuma a insensatez de colocar o combate a desigualdade em segundo plano, isto é, a promoção do bem-estar das pessoas e o uso racional dos recursos naturais não são o centro de suas preocupações. Esta crítica deve ser tema de uma agenda econômica de esquerda. Aqui, a minha hipótese é que somente a defesa de um programa de economia de tipo oriental pode fazê-lo, mas enfrenta a esquerda o seu próprio medo de enfrentar as forças de mercado.
Que tipo de programa econômico de base oriental é este que pode orientar a esquerda? Aqui, tomo como referência o estudo de E.F. Schumacher, intitulado “O grande negócio é ser pequeno: estudos sobre uma economia em que as pessoas são importantes” (WWF, 2024). No prefácio a edição brasileira de Gustavo Moraes e Maurício Serra, os autores destacam que as questões formuladas pelo autor em 1973 continuam atuais cinquenta anos depois “não só com perguntas cruciais, mas principalmente com perguntas que inverteram o sentido daquelas que eram feitas desde o início do século XX”. Ele percebeu que as linhas mestras da catástrofe capitalista anunciavam: “o aumento da produção industrial, a compulsão pelo crescimento a qualquer preço, a avidez pelo consumo cada vez maior de produtos, a depleção dos recursos naturais, etc.”. Discípulo de Keynes, colaborador de Michael Kalecki, Schumacher tem experiência na construção de planos econômicos porque colaborou no esforço de reconstrução da Alemanha do pós-Segunda Guerra Mundial e de outros países.
Schumacher começou a pensar a economia de uma forma diferente depois de uma viagem a Birmânia. O capítulo central de sua obra é intitulado “A economia budista”, que reconstruo aqui, e que foi essencial para o autor perceber que “o comportamento econômico no mundo ocidental decorria de critérios subjetivos que estavam amparados em premissas materialistas” (p. IX). O ponto central é que seu olhar econômico passou a se basear em princípios filosóficos e religiosos, encerrando uma busca do autor que se iniciou nos anos 50. Sua pergunta, seu ponto de partida, é: o sistema econômico espelha o que importa para a realidade? Ele critica a expansão da escala de operação do capitalismo, sua grandiosidade de produção, distribuição e consumo, bastando para isso constatar hoje o significado que tem o império da Amazon ou dos grandes atacados.
Schumacher segue nesse sentido o economista Leopold Kohr (1909-1994) que “argumentava que organizações sociais que operam em pequenas escalas eram as que resolviam da melhor maneira seus problemas e geravam mais bem-estar para suas populações” (p.X). Para Schumacher, é um pouco mais complexa a questão, já que “para cada atividade há uma escala apropriada”. Sua atitude era de uma atitude contrária ao culto da expansão ilimitada do capital, a sua grandiosidade que podia ser vista na idolatria do gigantismo que levou a uma economia da abundância para uma minoria. Entendo que a agenda econômica da esquerda deve voltar ao pensamento de Schumacher, pois ele ataca a economia do gigantismo econômico que produz desigualdade. O que significa o paradoxo de defender um programa econômico que não deve levar a economia a crescer, mas, ao contrário, a diminuir. A esquerda teme defender o impensável: não o crescimento econômico, sonho dos mortais, mas o decrescimento.
Erram, entretanto, os que pensam que a crítica de Schumacher era apenas ao capitalismo. Em realidade, ele também criticou o socialismo porque acreditava que este regime econômico se interessava apenas por valores não econômicos, o de superar a religião da ciência econômica. “Como contrapartida, ele defendia as estruturas descentralizadas, as pequenas empresas e, sobretudo, as pequenas escalas como um caminho alternativo para o desenvolvimento, na medida em que havia beleza e sabedoria na pequenez”. Há um meio termo a seguir e sua ideia de crítica a concentração da propriedade tem origens nas ideias distributivas da Igreja Católica, concebidas na passagem do século XIX para o XX. A pequena empresa, a pequena propriedade, os pequenos negócios devem ser o cerne da ação econômica da esquerda.
Outro ponto criticado por Schumacher é a tecnologia moderna. Sua crítica se resume a transformação da tecnologia em objeto de idolatria quando deveria servir para atender a comunidade e torná-la mais próspera. A tecnologia com feição humana recusa a violência, mas o seu excesso leva a estupidificação da pessoa humana. Quando Schumacher começou a estudá-la, a tecnologia também estava crescendo demais e sua crítica era de que a automação destrói milhares de empregos, ou subordina o homem às suas características, o que era para o autor torná-la estúpida. Isto fica pior quando imaginamos que sequer o autor imaginava o papel das redes sociais como produtores de imbecilização coletiva. O ponto defendido por Schumacher é que, depois das teses budistas, não é possível mais pensar em agenda econômica em termos de aumento de PIB, como fazem os programas de esquerda. Neles, as questões sociais e ambientais não são partes menores de um projeto econômico, ao contrário, garantir acesso a trabalhos de qualidade em um meio ambiente protegido é o que realmente importa, pois produz benefícios psicológicos como satisfação, segurança, solidariedade e convívio social. John Porrit, no prefácio a edição de 1993, afirma que, “os mercados de hoje não são livres nem são sempre eficientes; exacerbam a desigualdade de riqueza e aceleram a degradação ambiental. À medida que o pêndulo for oscilando de volta a ideia de um mercado regulado, planejado e adequadamente controlado, as ideias de Schumacher nesse campo poderão adquirir uma nova autoridade” (p.XVIII).
Mas o que a economia budista tem a ver com isso? Ela propõe um modelo de desenvolvimento alternativo com que sonha a esquerda. Esse programa tem uma base filosófica que depende, como queria a esquerda, de um modelo de Estado Novo. Mas supera as pretensões da esquerda, porque propõe um modelo que recusa os interesses privados em nome dos interesses comuns, que são, nos termos de Schumacher, também os interesses do ecossistema onde está o homem situado. Quer dizer, envolve a natureza.
Schumacher lembra que um dos mandamentos do Caminho Octuplo de Buda é “o correto meio de vida”. Qual o correto meio de vida que propõe a esquerda em seus programas econômicos? Os adeptos do budismo são defensores da tradição e não veem conflitos dos valores modernos com religiosos. Mas Schumacher lembra que não é bem assim porque os economistas, mesmo os chamados para colaborar na elaboração de planos quinquenais ou similares em países orientais, partem de uma visão econômica muito diferente e cita o exemplo do significado, para o capital, do trabalho. Para os capitalistas, não passa de um recurso a ter o custo reduzido, o que é bem diferente da concepção budista: “do ponto de vista budista, o trabalho tem pelo menos três funções: dar ao homem a oportunidade de utilizar e desenvolver suas faculdades; permitir que ele vença seu egocentrismo, unindo-se a outras pessoas para realizar uma tarefa comum; e produzir os bens e serviços necessários para uma existência digna” (p.47). Para um budista, organizar o trabalho de modo que fique sem sentido, como na linha de fábrica, é “uma atitude que chega a ser criminosa”. O budismo busca uma concepção de trabalho que tenha maior interesse pelas pessoas do que pelas coisas, exatamente o contrário do que faz o capital. Quando o capital imagina o trabalho precarizado, ele revela uma falta de compaixão pelo ser humano, pois é algo que pode destruir sua alma. Sequer o lazer é algo separado do trabalho ou um prêmio por ele: “trabalho e lazer são partes complementares do mesmo processo de vida e não podem ser separados sem destruir tanto a alegria do trabalho quanto a felicidade do lazer” (p.47).
A economia budista deve inspirar o pensamento econômico de esquerda porque pensa o trabalho como elemento integral do homem. O sentido da mecanização, quando ocorre na filosofia budista, é no sentido de aumentar a força e habilidade do homem, e nunca para transferir seu trabalho para um escravo mecânico que usa o homem como seu servo. Há uma linha de limite entre a máquina e o instrumento. O tear manual exige um homem para manipulá-lo; o tear mecânico destrói a parte humana do trabalho, substituindo-o “ao cumprir a parte essencialmente humana do trabalho” (p.48). Por esta razão, entende Schumacher, é muito diferente a filosofia budista do materialismo moderno, “pois o budista entende que a essência da civilização não é a multiplicação das necessidades, mas a purificação do caráter humano. E o caráter, ao mesmo tempo, é formado, em primeiro lugar, pelo trabalho do homem” (p. 48).
Quando um homem não encontra trabalho, não se trata da situação desesperadora de não ter renda, é algo mais profundo, pois se trata de não ter nutrição para a vida. Para os economistas, as coisas são mais importantes que as pessoas; para os budistas, é o contrário. Para os economistas, se manter certo desemprego for bom para todos, tudo bem, exatamente o contrário do que pensa o pensamento budista, para quem não existe auxílio social que compense o fardo de atribuir mais importância ao sub-humano do que ao humano. “O próprio ponto de partida de um planejamento econômico budista teria em vista o pleno emprego, e o objetivo principal dessa premissa seria, na verdade, oferecer emprego a todos os que precisam trabalhar fora; não seria nem a maximização do emprego, nem a maximização da produção” (p.49).
É que o interesse principal do budista é a libertação, enquanto que do materialista são os bens. Schumacher propõe um caminho do meio, pois não nega a importância da riqueza, mas o apego excessivo a ela; não é que não se deva experimentar coisas boas, mas evitar o desejo excessivo por elas. É, portanto, uma proposta de economia baseada na simplicidade; para o economista ocidental, o padrão de vida é medido pela quantidade anual de consumo; para o economista budista, o consumo é só um meio para o bem-estar, que se conquista com o mínimo de consumo. “A economia budista é o estudo sistemático de como alcançar determinados fins com os mínimos meios” (p.50).É bem diferente a economia budista, que visa maximizar a satisfação humana, da ciência econômica, que vê o consumo como o único fim e propósito da atividade econômica. Por os budistas abrirem mão da obsessão do consumo, diz Schumacher, é que “a pressão e o estresse da vida são muito menores na Birmânia do que nos Estados Unidos” (p. 51).
Há uma vinculação importante nesse princípio de simplicidade em relação a violência. O primeiro mandamento da doutrina budista diz “cessai de fazer o mal e procurai fazer o bem”, o que faz com que as pessoas que atendem suas necessidades por poucos recursos “não estarão dispostas a brigar entre si”, o contrário daquelas que dependem de um alto índice de consumo. Por isso, entendem os budistas que “a produção para atender a necessidades locais a partir de recursos locais é o modo mais racional da vida econômica”. Não é a alta taxa de importações e exportações que faz uma comunidade feliz, mas a capacidade que ela tem de resolver localmente as necessidades de consumo. A economia budista é, portanto, totalmente crítica de uma economia que vê a importação e exportação como fator de desenvolvimento: o que ela quer é que o cidadão seja capaz de satisfazer-se localmente, o que é um título de vigor. Este não é um ponto em que se equivocam programas de esquerda?
Outra diferença notável apontada por Schumacher entre a visão econômica ocidental e a visão budista está no uso dos recursos naturais. Para a primeira, não há preocupação com a quantidade de matéria viva que consome porque ela não se vê como parte de um ecossistema, ao contrário, se vê reduzida a cidades isoladas uma das outras. Para a segunda, sequer se trata de cuidado com os seres sensientes, mas uma atitude de respeito para com as árvores. “Todo seguidor de Buda deve, a cada poucos anos, plantar uma árvore e cuidar dela até ela vingar, e o economista budista é capaz de demonstrar sem dificuldade que a observância universal dessa regra resultaria em um alto grau de verdadeiro desenvolvimento econômico, independente de qualquer ajuda externa. Boa parte da decadência econômica do Sudeste Asiático (como de muitas partes do mundo) é devida, sem dúvida, a temerária e desavergonhada falta de consideração pelas árvores” (p.52). É verdade, entretanto, que Schumacher se refere ao contexto dos anos 70 e ele não conheceu o avanço tecnológico daquela região. Entretanto, essa mesma tecnologia não enfrenta agora o dramático problema do lixo que produz e que ameaça o planeta? Como diz o autor, o problema da ciência econômica moderna é que seu método não distingue recursos renováveis de não renováveis, iguala a ambos pelo seu preço em dinheiro. Nem tudo na natureza pode ser precificado. Do ponto de vista budista, a compensação que construtoras oferecem para ultrapassar os limites dados pelos Planos Diretores locais são simplesmente impensáveis, já que se trata de outra coisa, estas construções estão tirando algo muito mais valioso das pessoas, a qualidade de vida na cidade.
Não basta usar fontes de energia não renováveis porque são baratas. Do ponto de vista budista, o essencial é usar os recursos renováveis, pois os não renováveis significam um ato de violência contra o mundo natural, “e o homem tem o dever inelutável de visar o ideal de não violência em tudo o que faz” (p.53). A pergunta com que Schumacher encerra o capítulo é fundamental: a política econômica moderna leva o homem aonde ele deseja estar? Quando afirmamos no início exatamente isso, que o autor coloca as questões-chave para a esquerda, isto é, a pergunta: ”a modernização, tal como praticada atualmente, sem nenhuma atenção aos valores religiosos e espirituais, está de fato produzindo resultados agradáveis? No que se refere às massas, os resultados parecem ser desastrosos: o colapso da economia rural, a maré galopante de desemprego na cidade e no campo e o crescimento de um proletariado urbano sem alimento nem para o corpo, nem para a alma” (p.54).
Quando olhamos a proposta de Lula para o campo econômico de 2022, encontramos o quê? Políticas para o combate a inflação, preços de combustíveis, políticas indutoras de crescimento de setores específicos. Há uma política econômica voltada para o incentivo da produção da pequena economia, é verdade, e se há um pouco de budismo em sua proposta, está no fato de que iria “cuidar” da sociedade, leia-se assumir a tutela de preços. A proposta de Schumacher pede mais Estado, bem mais do que os liberais de plantão poderiam ou desejariam aceitar. Pedir para incluir a perspectiva budista nos programas de esquerda significa a construção de um programa econômico que, entre a escolha de um crescimento moderno e estagnação tradicional, siga a visão budista que diz que o desejável é encontrar o caminho do desenvolvimento intermediário entre ambos, que aquele que proponha “o correto meio de vida”.
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Foto da Capa: Rovena Rosa / Agência Brasil