Desenvolvimento sustentável é um conceito normativo que, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), requer que todas as sociedades equilibrem os seus objetivos econômicos, sociais e ambientais. Quando os países focam no crescimento do PIB, atropelando os objetivos sociais e ambientais, os resultados têm impactos negativos no bem-estar humano. Para avançar nessa discussão, a ONU lançou, em 2011, o World Happiness Report, convidando os países membros a “medirem” a felicidade de seus habitantes com o objetivo de usar os dados para políticas públicas. Especialistas de várias áreas, como economia, psicologia, análise de pesquisa, estatísticas nacionais, entre outros, descrevem como as medições de bem-estar podem ser usadas para avaliar o progresso das nações. Cada relatório, publicado anualmente desde 2012, é organizado por capítulos, que aprofundam questões relacionadas à felicidade, incluindo doenças mentais, benefícios objetivos da felicidade, a importância da ética, implicações políticas e as ligações com a abordagem da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para mensurar o bem-estar subjetivo e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).
Já são sete anos consecutivos em que a Finlândia aparece no topo da lista do World Happiness Report como o país “mais feliz” do mundo. Mas quase sempre a divulgação da pesquisa induz a uma percepção de felicidade particular do indivíduo, descolando da mensuração do bem-estar subjetivo com vistas a aplicações em políticas públicas. O que se afirma da Finlândia como país “mais feliz” do mundo é que os finlandeses usufruem de bem-estar social e de confiança que depositam uns nos outros, talvez até mais do que no estado, e isso é como um lastro para a felicidade. Mas é ainda mais complexo. Reportagem do The New York Times sobre o WHR abordou o assunto de forma mais abrangente e revelou que finlandeses de diversas áreas da sociedade, enquanto elogiavam a forte rede de segurança social da Finlândia e falavam com entusiasmo sobre os benefícios psicológicos da natureza e as alegrias pessoais dos esportes ou da música, falavam também sobre culpa, ansiedade e solidão. Em vez de “felizes”, eles eram mais propensos a se caracterizarem como “bastante sombrios”, “um pouco mal-humorados” ou não dados a sorrisos desnecessários. Muitos também compartilharam preocupações sobre ameaças ao seu modo de vida, incluindo a extrema direita no país, a guerra na Ucrânia e um relacionamento tenso com a Rússia. De fato, é impossível “ser feliz” quando não confiamos no outro ou em condições desumanas como a guerra, a violência, a fome, a injustiça, a insegurança generalizada. Essas coisas reais do mundo das fronteiras que inventamos.
O relatório de felicidade da ONU* poderia avançar para um campo de coerência global, de política global, aprofundando uma discussão psicológica calcada no real, que diferencia a felicidade do senso comum, que sempre pensa mal, afinal, a felicidade não é “um bem” que se mereça. E essa é uma percepção antiga, mesmo nos Estados Unidos com sua obsessão pelo poder e o crescimento infinito, custe o que custar. Vale lembrar o discurso emblemático do presidente Jimmy Carter, em 1979, com o país em crise: “Está claro que o verdadeiro problema de nossa nação é muito mais profundo que dutos de gasolina ou falta de energia, mais profundo ainda que a inflação e recessão. Em uma nação que se orgulhava do trabalho duro, famílias fortes, comunidades unidas, muitos de nós tendem a venerar o comodismo e o consumismo. A identidade de uma pessoa não é mais definida pelo que ela faz, mas pelo que ela possui. Mas descobrimos que possuir coisas e consumir coisas não satisfaz nosso desejo de propósito. Aprendemos que acumular bens materiais não é algo capaz de preencher o vazio de vidas desprovidas de fé ou propósito. Isto não é uma mensagem de felicidade ou reafirmação, mas é a verdade, e é um aviso.” E aí Jimmy Carter não foi reeleito, perdeu a eleição para Ronald Reagan, que desmontou os programas de desenvolvimento sustentável e afrouxou as amarras para que o crédito e o consumo crescessem ainda mais.
A crise de confiança não é exclusividade dos norte-americanos. Nós aqui bem ao sul da América do Sul vivemos agora mesmo essa crise na pele, com a enchente. Testemunhamos tudo o que poderia ter sido feito e não foi feito e as notícias de cada dia só nos levam a desconfiar de que algo realmente vá ser feito. O que mais vemos é a urgência de que as coisas voltem a ser como eram, de se poder voltar a consumir como antes. Até quando? O nosso tempo exige, com uma urgência inequívoca e gritante, novas formas de pensar e agir. “Ser feliz” talvez passe por um movimento de nos repensarmos nesse papel de “consumidores”, indivíduos moldados em uma história de bens materiais. É hora de encontrarmos sentido na produção de bens humanos, na confiança no outro, no amor à vida.
*A partir deste ano de 2024, o WHR é publicado sob nova parceria global entre a Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, a Gallup e o Centro de Pesquisa de Bem-Estar de Oxford, do Reino Unido.
Vera Moreira foi repórter e editora no Diário do Sul e Zero Hora, em Porto Alegre, e Estadão, Jornal da Tarde e Dinheiro Vivo (Jornal GGN hoje), em São Paulo. Foi agente literária de Sergio Faraco, com quem organizou o livro Decálogo do perfeito contista. Autora de Mulheres, Cérebro, Coração.
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