Fico feliz que o Andre Fersil não se chame Abel Fersil. E que os pais da Andréia Schefer não optaram por registrá-la como Abigail. Que bom que temos na “Sler” a Anna Tscherdantzew e não uma Adriana Tscherdantzew!
Por sorte, não há aqui nenhum Ailton para atrapalhar minha vida!
Já recebi da minha mãe um espantoso elogio quando enviei o link da Sler, para que ela – devoradora de livros, jornais, revistas, sites e portais – lesse não apenas os meus textos, mas os de todos os colunistas.
– Que orgulho, meu filho. Tu foste colocado como o primeiro colunista!
Agradeci, com a maior cara de pau e modéstia possíveis.
– Obrigado, mãezinha. Todos reconheceram meu talento e criatividade. Quase não aceitei a honraria, mas votaram para que fosse assim. E eu confio na credibilidade dos processos eleitorais no país…
Ter um nome que começa com “a” traz muitas vantagens. Ter um “i” na sequência garante quase sempre o primeiro lugar nas listas.
Certa vez ganhei o I Concurso Literário e Artístico Consulesa Antonietta Feffer Z’L’’, que tinha como tema os 3.000 anos de Jerusalém.
Bem, preciso confessar que dizer “ganhei” é um certo exagero. Entre cerca de 200 contos e crônicas, um seleto corpo de jurados elegeu 17 histórias, sem dar nenhuma ordem de preferência aos escolhidos. A minha, “Jerusalém: umbigo do universo”, onde criei um personagem que tinha um pouco de cada um dos meus avôs, abriu o livro que trouxe os textos selecionados.
– Maravilhoso! Foste o primeiro colocado! – disse minha mãe e, com poucas variações de palavras, também exclamaram alguns dos meus amigos.
– Todos os escolhidos, e mesmo os que ficaram de fora da lista, merecem parabéns! Quem disse que se fossem outros os jurados o resultado não seria diferente? – indaguei.
No livro, o meu privilégio alfabético esteve seriamente ameaçado. Dos 17 autores escolhidos no concurso, quatro começavam com “a”: este que humildemente aqui escreve; Ana Catach (“Jerusalém sempre viva”), Ana Roclaw (“Jerusalém”) e Aviva Dayan (“Um cântico para Jerusalém”).
Nem todo mundo, claro, deixa de perceber que meu nome está lá apenas pelo fato de ser o primeiro na ordem alfabética. Mas não importa. Mesmo esses, quando clicam no ícone “colunistas”, têm o prazer ou dissabor de ver primeiro a minha foto e meu nome, antes de procurarem pelos seus autores prediletos.
Biblioteca
Terei que fugir um pouco do tema e contar uma história, que não envolve a ordem alfabética dos nomes, mas também tem minha mãe e eu como personagens.
Fiquei pensando por um bom tempo se valeria a pena incluí-la, ainda que quebrasse um pouco o ritmo da crônica. Como você poderá ver agora, decidi que sim.
Vamos a ele:
Em 1985, eu estava em Israel, trabalhando como voluntário na agricultura de um Kibutz chamado Gazit, na Baixa Galileia. Mas em um jogo de futebol – a violência afasta os craques… – sofri uma séria contusão no joelho e precisei afastar-me dos campos: de futebol e da agricultura.
Após passar por alguns lugares, fixei-me na biblioteca.
Meu trabalho diário era tirar o pó dos livros e das prateleiras e, também, limpar os vidros e o piso do local.
Naqueles tempos em que ainda não havia e-mail e redes sociais e telefonar para outros países – no caso, outro continente – era muito caro, contei rapidamente para minha mãe, por telefone, sobre meu novo trabalho:
– Agora trabalho na biblioteca! Contarei mais detalhes por carta!
Não deu tempo!
Poucos dias depois, encontrei no armarinho do correio destinado aos voluntários um envelope, endereçado pela minha mãe:
– Eu sempre soube que, onde quer que tu estivesses, reconheceriam o teu talento. Tu és um jovem culto e inteligente. Foi por isso que te colocaram para trabalhar nesse espaço tão nobre!
Eu nem falava hebraico direito. Ler então, pior ainda.
De fato, meu trabalho era reconhecido. Quando trabalhava rápido, o meu prêmio era aproveitar o tempo restante para limpar também os banheiros que ficavam fora da biblioteca.
Mas para minha mãe, eu estava sentado atrás de um balcão, conversando e sugerindo para os habitantes daquela comunidade quais livros deveriam ler…
Voltemos aos nomes…
Ser o primeiro da lista tem também suas desvantagens. Não foram poucas as vezes em que cheguei 15 segundos atrasado na sala de aula e a professora (em alguns poucos casos, o professor) já tinha marcado com tinta vermelha a minha ausência.
Geralmente, a ausência era revertida, mas ficava aquela sensação de “atrasado de novo”! E olha que eu quase nunca chegava tarde. Não por minha causa, mas devido à pontualidade dos meus pais.
Lembro-me como se fosse hoje de colegas – não vou dedurá-los agora, mesmo mais de 55 anos depois – que muitas vezes chegavam depois de mim, iam sorrateiramente até suas mesas e simplesmente levantavam os dedinhos à hora da chamada e diziam “presente!”. Tudo sem qualquer olhar de reprovação da professora ou professor!
Tem um colega de quem realmente não lembro se alguma vez chegou atrasado. Mas se isso aconteceu, passou despercebido. Poderia entrar na sala mais de um minuto após o início das aulas. Confesso que, naqueles tempos, cheguei a invejar que meu nome não fosse Zelig.
Nome comum e do meio
Há mais uma vantagem em me chamar Airton. Mesmo após as vitórias que tornaram Ayrton Senna um ídolo nacional, o nome permanece raro no país.
Já Maria…
Não são poucas as vezes em que minha mulher e eu estamos em um supermercado, restaurante, loja ou simplesmente caminhando em um parque e alguém grita:
– Maria!
Maria olha. Mas em 99,9% das vezes não é com ela.
Olha, não. O certo é dizer “olhava”.
Agora simplesmente não dá atenção. Sabe que não é com ela.
Dias atrás, estávamos caminhando na orla de Santos e ouvimos uma voz feminina.
– Maria!
Continuamos no passeio. No mesmo ritmo.
– Maria! – repetiu a voz.
Seguimos em frente.
No dia seguinte, Maria recebeu um e-mail indignado.
Era uma amiga da faculdade:
– Tem algo que falei algum dia e você não gostou? Não esperava que você me ignorasse na praia! Fiquei triste e ofendida.
Maria explicou e tudo acabou bem.
Talvez a amiga até tenha pensado:
– Virou arrogante! Só porque o marido foi o primeiro colocado naquele concurso de literatura…
Flicts
Falei há pouco no Zelig e veio agora à minha mente a lembrança do grande Ziraldo, que deixou nosso plano terrestre há praticamente um ano, no dia 6 de abril de 2024, mas cujos livros permanecem aí para todo mundo ler.
Ziraldo foi o escritor que mais me influenciou. Foi de um livro dele a minha primeira paixão literária: “Flicts”.
Não sei se você leu. Se não, ainda é tempo. É uma obra para todas as idades. Se já leu, claro, sempre vale a pena ler de novo.
A história (aqui terá spoiler) fala de uma cor que não encontra seu lugar no mundo. Era uma cor muito rara e muito triste. “Era apenas o frágil, feio e aflito Flicts.”
Ziraldo escreve:
“Todo mundo no mundo tem cor
tudo no mundo é
Azul
Cor-de-rosa
ou Furta-cor
é Vermelho ou
Amarelo
quase tudo tem seu tom
Roxo
Violeta ou Lilás
Mas
não existe no mundo
nada que seja Flicts
– nem a sua solidão –
Flicts nunca teve par
nunca teve um lugarzinho
num espaço bicolor
(e tricolor muito menos
– pois três sempre foi demais)
Não
Não existe nada no mundo
nada que seja Flicts
Flicts tenta encontrar um lugar na caixa de lápis da escola, cheia de lápis de cor. Mas não consegue. No jardim florido, quando surge a primavera. Mas também é em vão.
“Nem uma cor
ou
ninguém
quer
brincar
com o
pobre Flicts.”
Nem mesmo entre as cores do arco-íris Flicts encontra o pote de ouro da amizade.
Viaja o mundo, mas não encontra o que procura em faixas, escudos, bandeiras ou estandartes.
Até no semáforo (sinaleira) de trânsito, Flicts procura um sinal, um amigo, um irmão, para iluminar sua vida.
E indaga:
“- Eu posso ser seu amigo?
– Não – avisa o Vermelho.
– Espera – o Amarelo diz
– Vai embora – lhe manda o Verde”
Ziraldo nos informa que um dia Flicts parou de procurar. Entre rejeições e decepções, ele vai se entristecendo, definhando, subindo e sumindo, sumindo, até desaparecer.
“Sumiu
que o olhar mais agudo
não podia adivinhar
para onde tinha ido
para onde tinha fugido
em que lugar
se escondera
o frágil e feio e aflito
Flicts”
Ao final do livro, depois que o autor nos conta e nos encanta a respeito das cores da Lua que vemos aqui da Terra, nas diferentes horas do dia, ele diz:
“MAS NINGUÉM SABE A VERDADE
(a não ser os astronautas)
que
de perto
de
pertinho
a Lua é Flicts”
Meu Deus.
– A Lua é Flicts!
Na minha vida de gurizinho gago, gremista (na época meu time só perdia!) e judeu, aquele livro me trouxe o que hoje se chama de empoderamento e acolhimento. Trouxe ainda a paixão pela literatura. E a certeza de que sempre há um cantinho para a gente no universo.
O Z da questão!
Será que, de alguma forma, o nome pode ter influenciado na obra do autor de “Flicts”, “O Menino Maluquinho” e tantas outras obras geniais? Fico pensando se ter o nome começando com a última letra do alfabeto fez o autor trabalhar ainda mais, estudar ainda mais, ser ainda mais criativo para evitar que o leitor desistisse no meio do caminho nos livros organizados burocraticamente em ordem alfabética. Talvez o Ziraldo, escolhido pelos pais do autor como uma junção de seus nomes, Zizinha e Geraldo, tenha sido decisivo para sua trajetória brilhante.
Quem sabe o autor até pensou em criar uma historinha com o seguinte tema:
Sorte que meu nome não é Airton!
(Se você gostou dessa crônica, envie para os parentes e amigos. Mas de forma alguma a envie para minha mãe…)
Todos os textos de Airton Gontow estão AQUI.
Foto da Capa: Freepik