Neste mês, nossa coluna da Odabá abordou a saúde com enfoque em alguns aspectos importantes na especificidade da população negra. Para finalizar, contribuo abordando a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), uma política pública dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). O debate traz elementos para que entendamos que essa política não é uma tentativa de “fazer uma medicina só para negras e negros” ou “tornar o SUS negro”, mesmo a população negra correspondendo à maioria dos atendimentos – 70% -, e essa maioria ser composta por mulheres negras. A abordagem mantém a mesma intenção dos artigos anteriores: a de letrar àquelas e àqueles que ainda não têm informações sobre o assunto.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define como “o completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de enfermidade“. Partindo deste conceito, colocamos que a PNSIPN é uma resposta do Ministério da Saúde às desigualdades em saúde que acometem a população negra brasileira e o reconhecimento de que as condições de vida desta população resultam de injustos processos sociais, culturais e econômicos presentes na história do país.
A partir da Conferência de Durban, em 2001, o Brasil assume-se como país racista. Após a inserção do movimento negro brasileiro nos espaços de controle social garantidos pela Lei do SUS, mais especificamente a Lei 8142/90, que pressiona o governo e o Conselho Nacional de Saúde a elaborar e promulgar esta política, houve importantes avanços a fim de inibir as iniquidades e retirar o país de índices baixos de qualidade de vida, morbidade e mortalidade da população.
A construção de equidade racial em saúde para a população negra, portanto, é um compromisso firmado através da Portaria 992/2009, que instituiu a Política Nacional de Saúde Integral para a População Negra. Sua marca, conforme consta no capítulo 1 do documento, é o “reconhecimento do racismo, das desigualdades étnico-raciais e do racismo institucional como determinantes sociais nas condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde”.
Mas o que este reconhecimento quer dizer exatamente?
Ele atesta que o racismo, secularmente praticado contra a população negra, afeta a garantia de acesso aos serviços públicos de saúde, assim como é fator estruturante da desumanização da atenção prestada a este contingente populacional na saúde pública.
O racismo é de ampla abrangência e complexidade, uma ideologia que se realiza nas relações entre pessoas e grupos, no desenvolvimento de políticas, nas estruturas de governo e nas formas de organização dos estados. Penetra e participa das culturas e requisita todos os instrumentos capazes de mover processos em favor dos interesses e necessidades de continuação e manutenção dos privilégios e hegemonias dos quais dispõe.
Camara P. Jones, médica e professora estadunidense especialista no assunto, defende que o racismo deve ser reconhecido como um sistema, uma vez que se organiza e se desenvolve através de estruturas, de políticas, de práticas e de normas capazes de definir oportunidades e valores para as pessoas e populações a partir de sua aparência, atuando em diferentes níveis: pessoal, interpessoal e institucional.
Alguns grupos da sociedade civil, a partir da PNSIPN, vêm se apropriando deste conceito e também de seus pressupostos para dialogar com a gestão do estado, a fim de que se incremente ainda mais a forma com que podemos atingir ao máximo a população brasileira dentro de suas diversidades, sejam elas culturais ou de outras formas de atuação social.
No último mês de março, pudemos acompanhar a revogação, na cidade do Rio de Janeiro, de uma resolução conjunta do regimento do Conselho Nacional de Saúde (CNS) que reconhece as práticas tradicionais de matriz africana como complementares ao SUS, assim como outras tantas práticas que já existem reconhecidas neste sistema, tal qual a acupuntura chinesa, a reflexologia, meditação, arteterapia entre outras, as chamadas Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS). A revogação se deu por conta da pressão política em repúdio ao reconhecimento, revelando mais um episódio de racismo religioso liderado por parte da extrema direita evangélica e cristã.
Em resposta, o povo de terreiro de todo o Brasil, enquanto sociedade civil, se articula para que a Resolução Conjunta SMAC/SMS nº 02, de 18 de março de 2025, do CNS, seja agora reconhecida em todo o território nacional.
Vale salientar que, desde a Constituição Federal de 1988, no artigo 198, que determinou que a sociedade participasse da gestão do sistema de saúde como controle social, a participação popular se torna uma ferramenta essencial. A partir desse movimento engajado, é possível perceber a chegada das políticas de saúde “na ponta”, com ações e serviços públicos de saúde que integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as diretrizes que primam pela descentralização, o atendimento integral e a participação da comunidade.
Neste processo de democratização da saúde, a PNSIPN se torna mais uma ferramenta de reparação histórica, principalmente se for atendido o objetivo de promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e a eliminação da discriminação nas instituições e serviços do SUS.
O objetivo maior é desdobrado em objetivos específicos e diretrizes, os quais constituem o bojo da política de ações afirmativas implementadas pelo estado brasileiro, que dá tratamento preferencial a minorias sociais como um produto da constatação da pouca eficácia da legislação e das políticas de cunho universalista e individualista, com vistas a quebrar o padrão inercial da discriminação racial.
Cabe salientar que a formulação de políticas públicas ocorre quando os governos democráticos transformam seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real, com um propósito coletivo e em benefício da sociedade. Isso se dá a partir de escolhas que o governo faz, assim como o não fazer também pode ser interpretado como uma política.
O que podemos concluir é o quanto mais ou menos racista o estado pode ser a partir do entendimento e da aplicação de políticas como a PNSIPN e, também, o fortalecimento do próprio SUS. Como afirma o antropólogo e professor Kabengele Munanga: “o racismo é um crime perfeito no Brasil, porque quem o comete acha que a culpa está na própria vítima, além do mais, destrói a consciência dos cidadãos brasileiros sobre a questão racial. Nesse sentido, é um crime perfeito”. Isso ocorre quando nós não conseguimos verificar quem é o racista ou determinar a própria vítima do racismo como racista, ou ainda, dizer que políticas que queiram desfazer as iniquidades, provocando igualdades, sejam racistas.
O Rio Grande do Sul, numa comparação nacional, é o estado que tem mais cidades aderentes à PNSIPN. Porto Alegre é a cidade que tem desenvolvido esta política de forma mais capilar. Mesmo assim, ainda não há, por exemplo, nos cursos de Medicina, Enfermagem e demais especialidades da saúde, a presença dessa política no currículo obrigatório.
Atualmente, PNSIPN está sendo avaliada pelo Ministério da Saúde, onde sou pesquisadora colaboradora. Nos orgulha noticiar que temos um curso permanente há 15 anos, na capital do Estado, formando anualmente trabalhadoras e trabalhadores da saúde e militantes do movimento social, como promotoras e promotores da saúde da população negra, como política da saúde do município. No RS, essa política tem cuidado das populações quilombolas, em especial, ressaltando que na pandemia do Covid-19 mais de 90% dessa população foi prioritariamente vacinada.
Se as iniquidades refletem na saúde das pessoas; e se as comorbidades na população negra, em sua maioria, estão relacionadas à vulnerabilidade que o racismo provoca, o que nos resta é observar que doenças como diabetes, cardiopatias e pressão alta são recorrentes na população negra. Com isso, necessitam de muito investimento em pesquisa para reverter esse quadro e achar tratamentos mais eficazes que possam reverter esse quadro de doenças sociopatológicas.
Esses dados nos fazem refletir, e é meu intento aqui, que o SUS seja talvez o maior esforço de reparação histórica com a população negra em plena atividade no Brasil. Sua abrangência e eficácia, mesmo diante de todos os problemas que enfrenta, são essenciais para pessoas negras, que compreendem 56% da população.
O que queremos deixar como mensagem é que, desde 1988, o Brasil vem construindo esse sistema de saúde que é oferecido de forma gratuita e que, inevitavelmente, 100% da população, em alguma situação, o utiliza. A Vigilância Sanitária, o SAMU, os transplantes de órgãos, os hospitais de pronto-socorro são atendimentos do SUS. É fundamental termos essa percepção, entendendo que, de uma maneira macro, o SUS deve ser defendido em prol do bem maior que é a população brasileira.
Nina Fola, mãe de Aretha e Malyck, é multiartista, socióloga, atuante nos coletivos @afroentes, @coletivoatinuke e @odaba.br. Aborda a questão de raça e gênero em todos os seus trabalhos acadêmicos, artísticos e profissionais. Gestora do @cavalodeideias, uma consultoria em diversidade e inclusão onde faz palestras e formações. (@ninafola)
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