A minha inquietude vinha ultimamente aumentando, diante dos indiscriminados cortes e plantios desordenados de árvores que vêm acontecendo em nossa cidade. Porto Alegre, que há 50 anos era a cidade mais arborizada do país, hoje não é mais aquela comemorada pela beleza de sua flora, em especial pela arborização. Com a inquietude, veio uma avassaladora saudade, que apertou cada vez mais o coração.
Junto ao corte das árvores, vem a tristeza de comunidades que se beneficiavam de sua sombra, beleza e flores, dos pássaros que cantavam alegremente, do equilíbrio climático que elas favoreciam. O espaço vazio passou a ser ocupado por alvenaria, ruas… nada. As plantadas se sentirão cada vez mais órfãs, pois ninguém olha com cuidado para elas.
O presente texto pretende ser não apenas uma renovada homenagem à Maria do Carmo Conceição Sanchotene (foto da capa), mas uma leitura de sua jornada, da qual certamente aprendizagens podem ainda ser feitas, aprimoradas e executadas. O que ela preconizou e realizou ainda são ações de relevância significativa, possíveis, viáveis e necessárias para a vida de tudo, não apenas em Porto Alegre, nos estados e no País.
Lindos túneis de árvores nas ruas e avenidas, cuidadosamente plantadas e cuidadas, hoje apresentam vazios, a maioria totalmente tomadas por outras vegetações que as sufocam, e muitas aparecem sem folhas, com galhos nus voltados para o alto, parecendo aquelas imagens de árvores presentes em filmes e ilustrações de cenas de terror.
Como estão hoje as ruas Maryland, com Guajuviras; a Victor Isler, na Serraria, com Coqueiros; a Dr. Vale, com Tarumãs pretas; a avenida Diário de Notícias, com Butiazeiros, e a Farrapos, com Gerivás?
Elas tiveram o privilégio de serem fruto do dedo verde, da cabeça pensante, do planejamento compartilhado, que exemplificam a visão da arborização sustentável para a cidade de alguém que, se hoje viva ainda estivesse, estaria a lamentar profundamente. Alguém que, como funcionária municipal concursada, deu a sua vida profissional para uma arborização diferenciada para nossa cidade. Depois de aposentada, continuou a lutar, a produzir conhecimento a respeito, a abrir várias portas.
Esta querida profissional é a Maria do Carmo Conceição Sanchotene, falecida em dezembro de 2022. Profissional que deixou um legado inestimável na área de arborização urbana em Porto Alegre e no Brasil. Bióloga e mestre em botânica, Maria do Carmo foi pioneira em diversas iniciativas inovadoras de sustentabilidade e do uso de árvores nativas não apenas em Porto Alegre, mas em outras cidades brasileiras.
Como primeira diretora do Departamento de Proteção à Fauna e à Flora da Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMAM) de Porto Alegre, primeiro cargo ao nível Brasil, liderou a criação do primeiro Plano Diretor de Arborização Urbana do país, que lamentavelmente ainda está no Congresso para ser aprovado e homologado pela Presidência da República. Esta, e outras ações de impacto, destacaram a capital gaúcha pelo uso inovador de espécies nativas em suas ruas e praças.
Colaborou na formulação de políticas públicas que ainda influenciam a gestão ambiental urbana no Brasil. Sua atuação não se limitou aos gabinetes, sendo presença constante nos viveiros e nas discussões e proposições sobre a necessidade de uma visão holística da arborização.
Maria do Carmo defendia a pluralidade de visões dentro da arborização e a necessidade de diversos profissionais, como biólogos, arquitetos-paisagistas, agrônomos, físicos, gente da educação ambiental, se darem as mãos e trabalharem juntos. Afirmava, com convicção, ser essa visão holística necessária à arborização. Mesmo após aposentada, em 2003, não abandonou a labuta. Sua atuação fez Porto Alegre ainda se destacar entre as cidades brasileiras, pelo uso de árvores nativas.
Em 16 setembro de 1992, a Maria do Carmo, pela sua visão, conhecimento e práticas efetivos, também se destacou como fundadora e primeira presidente da Sociedade Brasileira de Arborização Urbana (SBAU), pessoa jurídica de direito privado e interesse público, sem fins lucrativos e sem cunho político ou partidário, ainda em pleno desenvolvimento nos dias de hoje.
A Maria do Carmo, além de ser autora de livros e artigos relevantes sobre o tema, como “Frutíferas Nativas Úteis à Fauna na Arborização Urbana” (esgotado). Na revista ASTEC, o artigo Porto Alegre, cidade das árvores, teve significativa repercussão estadual e nacional.
Em 2008, a Sociedade Brasileira de Arborização Urbana passou a integrar o Conselho Municipal de Ciência e Tecnologia – COMCET, até 2022. Sua representante foi a Maria do Carmo, em eleições sucessivas. O colegiado passou a contar com uma profissional que, além de conhecer a cidade e as dinâmicas do setor público municipal, trouxe, no seu âmbito, conhecimentos relativos às tecnologias da Arborização Urbana e seus focos a serem valorizados, estimulados e vivenciados na Educação Ambiental. Planejou e executou, como integrante do COMCET, inúmeros eventos e, em cada Conferência Municipal de Ciência e Tecnologia, foram validadas Diretrizes de Ciência e Tecnologia por ela apresentadas, endossadas pelos seus pares do COMCET e aprovadas pela comunidade porto-alegrense, participante das Conferências Municipais. Diretrizes voltadas para o Executivo Municipal adotar em suas políticas.
Ao conhecerem esta vasta visão e atuação, em 2019, em um encontro internacional, interessados e pesquisadores no assunto articularam-se para a publicação sugerida pela bióloga. Em setembro 2021, diversos autores, juntamente com a Maria do Carmo, lançaram o e-book “Verde Urbano”. Ela também participou do livro sobre a Região Sul, escrevendo sobre florística e políticas públicas. A edição foi publicada em 2022, porém com pouca divulgação.
A família da Maria do Carmo fez a doação de todo o seu acervo à Biblioteca da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, acervo que vale a ler, estudar e praticar.
Diante do atual quadro da arborização em nossa cidade, se ainda viva estivesse, além de estar decepcionada e estarrecida, estaria se manifestando com firmeza e devida fundamentação contra as ações desarticuladas que vem ocorrendo no campo da arborização e, sem apontar equívocos ou erros, estaria trabalhando com a apresentação de soluções alternativas, envolvendo profissionais de formações diferenciadas, com olhares múltiplos, focados em solucionáticas viáveis, sustentáveis e cidadãs.
Com um sentimento de missão cumprida, seus familiares, muitos de seus admiradores, aprendizes e pares, estão finalmente vendo uma manifestação concreta de reconhecimento do Executivo Municipal, por meio do Grupo Executivo de Sustentabilidade do Centro Administrativo Municipal Guilherme Socias Villela, que é a entrega de espaço de Convivência com o nome de Maria do Carmo Conceição Sanchotene. Espera-se que a curiosidade se faça presente e seus saberes sejam lembrados, revistos e aplicados, antes que seja tarde demais.
A nossa Cacaia, como era conhecida, teve uma vida muito produtiva. De caráter agregador e solidário, participou de vários grupos comunitários e, em cada um, deixou marcas indeléveis. Gentil e generosa, sua vida produtiva continua no coração dos que com elas conviveram, que anseiam que suas obras sejam não apenas admiradas, mas novamente aplicadas na Cidade.
Certamente, hoje, muito mais do que ontem, as pessoas, as árvores e os pássaros de Porto Alegre estão sentindo a falta de seu toque técnico e amoroso.
Rita Maria Silvia Carnevale é articuladora do POA Inquieta (spin *Articuladores, Educação, Boa Política), Mestre em Administração de Empresas, pela UFRGS. Aposentada, trabalha como pesquisadora e consultora de Desenvolvimento de Pessoas, Governança e Gestão, em especial de instituições de educação. Participa do Conselho Municipal de Inovação, Ciência e Tecnologia de Porto Alegre – COMCET. É mentora de um jovem do Projeto Pescar.
Foto da Capa: Maria do Carmo Conceição Sanchotene / Acervo Pessoal
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