Na última semana, estive em Florianópolis em um auditório lotado ouvindo o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), Silvio Almeida. A visão de um negro retinto como uma autoridade do governo ainda é rara por aqui e desconcerta uns ao mesmo tempo que inspira outros. Tudo isso aumenta quando ficamos à frente de um intelectual preparadíssimo que fala de temas complexos de forma simples com razão e emoção, como disse. A ampla maioria dos que estavam lá o aplaudiu de pé.
O público que o aplaudia, respirava aliviado após quatro anos de ataques às universidades, à educação e ao conhecimento, processo que eu abordei na coluna “A Guerra às Universidades”, publicada aqui na SLER em outubro passado. Nela falava da relação do fascismo com as universidades e o mundo intelectual e de como a extrema-direita, ao chegar ao poder, promoveu um confronto com a educação.
Essa guerra teve mais um capítulo na semana que passou, com a decisão do governo estadual de São Paulo em banir os livros a partir do 6º ano, usando apenas material digital, em ato que Elio Gaspari classificou, com propriedade, de “truculência pedagógica”.
O livro é o símbolo maior do conhecimento, posto mantido mesmo com a ascensão da Internet e outras ferramentas digitais. Não por acaso, regimes ditatoriais admirados pelo governador paulista foram pródigos em proibi-los, enquanto outros ficaram notórios por queimá-los.
Nada poderia ser mais simbólico do que expulsar o livro das escolas públicas, movimento que não será acompanhado pelas escolas privadas nem recomendado pelos especialistas na área. Diante da evidente repercussão negativa à medida, o governo paulista recuou e prometeu imprimir e encadernar os livros em escolas que não têm estrutura para tanto, mesmo que as escolas tenham recebido montanhas de livros, guardados e sem uso conforme orienta a Secretaria de Educação.
A ideia de que o ensino superior é um espaço privativo das elites foi defendida sem qualquer constrangimento por um dos ministros da educação do governo anterior, Milton Ribeiro, ao afirmar que a “universidade, deveria, na verdade, ser para poucos”. Entre esses poucos, certamente não estaria a estudante cuja foto estampa essa coluna: a congolesa Gaelfie N. Gouaka, a primeira formada a cursar integralmente a graduação na UFRGS a partir do ingresso para pessoas em situação de refúgio. Ela colou grau em Saúde Coletiva na UFRGS no último dia 22 de junho, com direito à láurea acadêmica.
A ideia de que a universidade deve ser um privilégio de quem pode pagar por ela, se mostrou em toda sua crueza na sessão em que um deputado bolsonarista perguntou ao líder da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL), José Rainha, como ele, que tinha uma renda de cerca de 3 salários mínimos poderia arcar com o custo do curso de medicina frequentado por sua filha, na casa dos 10 mil reais. A resposta de Rainha revelou, em poucas palavras, o confronto de visões de mundo: “ProUni. Do governo Lula”.
A elitização do ensino superior, assim como o ataque às universidades, faz parte de um projeto político global. A recente decisão da Suprema Corte dos EUA, banindo a utilização de critérios baseados em raça na seleção de novos estudantes mostra isso, conforme matéria da influente revista “The Economist”. (É preciso lembrar que a revista britânica é considerada a bíblia do liberalismo não se identificando de forma alguma com as pautas da esquerda).
Baseada em recente estudo, a reportagem falava de como é “fabricada” a elite dos EUA, dona de diplomas da chamada “Ivy League”, um grupo formado pelas mais prestigiadas escolas daquele País e algumas poucas outras no que eles chamaram de grupo “Ivy +” que facilitam o acesso de seus alunos aos melhores cargos, seja no serviço público ou na iniciativa privada, possuindo forte presença seja na lista dos dirigentes das 500 maiores empresas ou na Suprema Corte.
Considerando apenas o desempenho equivalente nos testes padronizados, os pesquisadores constataram que ter uma renda superior incrementa as chances de acesso ao grupo de elite. Os membros das famílias que se situam entre os 1% mais ricos dos EUA têm o dobro de chances de alunos com desempenho similar fora dessa faixa. Já estar entre os 0,1% dos mais ricos faz com que o aluno tenha 3 vezes mais chances de ser admitido nas instituições de elite.
Se fossem considerados apenas os resultados de testes, os alunos provenientes do 1% mais ricos dos EUA já abocanharam 7% das vagas. Porém, com a ajuda de outros fatores, como as doações para as universidades e as vagas destinadas aos praticantes de esportes que dependem de equipamentos caros, o 1% mais rico ganha “uma mãozinha” e ocupa 16% das vagas. Como a própria revista nota, muito mais do que qualquer programa que beneficiou negros ou outros grupos marginalizados na sociedade.
A reportagem aponta que essas preferências das universidades afetam a sociedade americana como um todo e não apenas pela perpetuação da desigualdade, já que criam uma elite menos qualificada que, com seu poderio econômico, impedindo o acesso de outros mais capazes.
Se isso ocorre nos EUA, imagine-se quais seriam os dados em sociedades ainda mais desiguais como o Brasil. Ainda que o acesso aqui se dê somente em testes acadêmicos, o abismo social expulsa aqueles com menor renda das universidades de maior prestígio e dentro delas, dos cursos que preparam profissionais de maiores salários.
Assim, a desigualdade social se mantém e se aprofunda, enquanto a imensa fatia da população, sua maioria, tem o seu direito ao futuro atacado. A esse modelo, o ministro Silvio Almeida contrapõe uma ideia generosa da universidade inclusiva e com um olhar para a frente, afinal, como ele disse, “o futuro tem que estar presente. Nós temos que fazer as coisas melhorarem a vida presente para que nós possamos nos lançar em direção ao futuro”. Para, assim, “projetar possibilidades onde elas ainda não existem”.
Foto: Instagram @ufrgsnoticias
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