O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio Grande do Sul/CAURS promoveu nos dias 6 e 7 de março o Seminário “Ações Afirmativas: Pautas Identitárias, Grupos Minorizados”. Fui convidada para falar sobre “Urbanismo e Inclusão, desafios e perspectivas”, em parceria com Flavia Boni Licht, minha amiga, arquiteta com quem aprendi e aprendo muito. Aqui um resumo do que falei.
Urbanismo e inclusão são questões fundamentais para o nosso bem-estar no mundo. E falar, a partir desta perspectiva, sobre o futuro que sonhamos, é estimulante. Precisamos de atitude e o que me move é o desejo de viver em uma cidade diversa, acessível, generosa e bonita, que ofereça o máximo de autonomia e dignidade aos moradores.
Faço parte de um grupo que representa mais de 45 milhões de pessoas, segundo dados levantados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2019. Dos 212 milhões de brasileiros, 45 milhões têm algum tipo de deficiência. É quase 25% da população, praticamente a população da Argentina. Não é pouco! E temos a Lei Brasileira de Inclusão que define com clareza uma pessoa com deficiência “Aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, e que, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
Mas quem efetivamente conhece esta lei?
Escrever e falar sobre acessibilidade e inclusão foram maneiras que encontrei para combater a discriminação, lutar por respeito e acolhimento. Muitas vezes, os espaços só se abrem se a pessoa com deficiência assume um protagonismo, vira exemplo de superação e passa a ser aceita como se sua existência só tivesse sentido a partir da superação. Mas esta exigência não cabe no meu cotidiano. O que precisamos é viver bem a partir da nossa condição. Quase ninguém vê a singularidade de uma pessoa com deficiência que transpõe infinitas barreiras físicas e sociais todos os dias. Em especial o olhar de quem nos vê como sub-humanos, impulsionado pelo olhar de uma sociedade despreparada que ergue barreiras quando deveria derrubá-las.
O que esses olhares fazem por nós? Apontam algum tipo de acessibilidade? Estão preocupados em incluir? O que pensa o poder público, engenheiros, arquitetos, educadores? Faço estas perguntas frequentemente e as respostas são mínimas. Quem reconhece nossos limites e possibilidades no cotidiano? Está tudo certo com os meus 1m10cm, minhas pernas e braços curtos, meus dedos gordinhos. O que eu busco é viver com autonomia, dentro desta condição. Busca que assumi desde que passei a conviver com pessoas cegas, pessoas que andam em cadeira de rodas, pessoas surdas, pessoas com síndrome de down, autistas. Falamos sobre discriminação com foco no respeito, que em relação ao nanismo praticamente não existe. Ainda somos vistos como piada.
Mas o nosso foco aqui é Acessibilidade e Inclusão no Cotidiano da Cidade
Os discursos hoje têm um viés voltado para a diferença. Reconhecem o cotidiano de pessoas com deficiência ou com comportamento “incomum”. Em um mundo feito para pessoas “normais”, esse olhar é bem-vindo. Chamar a atenção das autoridades e sensibilizá-las para as limitações que enfrentamos, reivindicando políticas públicas inclusivas, é um compromisso social que deve ser impulsionado de forma coletiva pelas instituições e administrações em sintonia com as comunidades.
Falar em urbanismo e inclusão é falar no bem viver das pessoas que moram na cidade. Em algum momento, uma parcela da população tem sua mobilidade reduzida: idosos, gestantes, mães com bebês no colo ou em carrinhos, pessoas em processo de reabilitação, vítimas de acidentes. Portanto, uma cidade democrática, que olhe para a diversidade, precisa pensar neste universo. E romper com padrões impostos pela normalidade.
A jornalista e consultora em audiodescrição Mariana Baiarle, uma amiga com baixa visão com quem aprendo muito, compartilha experiências de vida no blog Três Gotinhas. Ela diz: “O olho às vezes me atrapalha. A visão embaraçada muitas vezes me trai. Minha retina desvairada me leva a tropeços constantes em ruas e calçadas esburacadas. Mas a rotina de tombos e tropicões me ensina também a levantar, a re-levantar e encarar a vida de diferentes maneiras”. Quem se dispõe a administrar uma cidade precisa evitar tombos e tropeços com intervenções que facilitem o andar de cada um de nós. Quais os projetos viáveis de revitalização do espaço urbano, voltados para a criação de ambientes livres de barreiras físicas, que os administradores da nossa cidade têm em andamento?
Vou citar algumas situações que vivo e observo no dia a dia.
*Calçadas irregulares e quebradas, muitas sem rebaixo do meio-fio, sem piso tátil, são um obstáculo para a autonomia de pessoas cegas ou com baixa visão, pessoas que andam em cadeira de rodas, com bengalas, mães com filhos em berços, idosos com alguma dificuldade de locomoção.
*Carros estacionados nas calçadas ou em entradas de garagens, sem deixar espaço para o pedestre passar, são um obstáculo. Mas estão lá. E ninguém faz nada.
*Obras de todo tipo, tanto de reformas ou de prédios em construção, que invadem as calçadas desrespeitosamente também representam um risco para o pedestre.
*Sinaleiras que necessitam de revisão dos tempos para a travessia tranquila de uma pessoa com problemas.
*Linhas de ônibus urbanos que não têm um sistema que oriente os usuários sobre as paradas e muito menos um sistema adequado para acolher uma cadeira de rodas.
*Paradas de ônibus que necessitam de sistema de áudio, avisando a linha que chega.
*Painéis de elevadores e balcões de hospitais, de repartições públicas e privadas muito altos, assim como caixas de banco, eletrônicas ou não, maçanetas de portas redondas, lugares nos teatros, de um modo geral dificultam a autonomia de pessoas com nanismo, como eu.
E as leis? E a fiscalização? E a ética? Quem está preocupado?
Flavia Boni Licht diz: “A eliminação das barreiras físicas da estrutura da cidade, de todo o mobiliário urbano, das edificações, dos meios de transporte e de comunicação enriquece e amplia a qualidade de vida dos moradores e visitantes, possibilitando, além disso, a inclusão das pessoas com deficiência no cotidiano. Isso significa uma cidade efetivamente democrática”.
As cidades precisam de administradores e profissionais com olhares inclusivos, que não estejam focados apenas no mercado e no lucro. Meu desejo é ainda viver em uma cidade que possibilite o máximo de autonomia e dignidade aos seus habitantes, seja na periferia, nas vilas, nos bairros nobres, nos centros históricos e turísticos. O caminho é longo, mas estou na estrada e dividir esta reflexão com arquitetos é estimulante. “A cidade é para quem vive NELA ou para quem vive DELA?” – Esta pergunta do ator e diretor Amir Haddad, do grupo teatral Tá na Rua, precisa ser ouvida na dimensão da sua importância. O corpo dessa cidade precisa de quê? E os corpos que por ela andam?
Como este é um encontro que se abre para vozes dissonantes, vou ler um pequeno texto/poema de Altair Sousa, mineiro estudioso da linguagem, da educação e da psicanálise: “Tantas vezes precisamos sair das nossas peles / Para podermos enxergar as entranhas existenciais do outro / Todo mundo é um emaranhado de vivências. / A alma humana é como um rio de águas turvas / Há oxigênio, há peixes, há plantinhas, há pedras / E pode de haver até jacarés. / Existir é rio e é a sede”.
Vamos sair das nossas peles, deixar a água fluir, nos banhar na diversidade. Vamos dividir saberes e as diferenças que nos constituem e enriquecem. Vamos fazer da cidade um espaço de inclusão. Vamos reler o poema “O Mapa”, de Mario Quintana, o escritor das nossas ruas e esquinas esquisitas, para entender melhor a cidade. Que anatomia é essa? Que tecido a envolve? Que sonhos, esperanças, pesadelos e doenças estão impregnados na pele desse corpo urbano? Vamos tratar melhor esse corpo que pulsa incessante por vida digna.
Que essa seja uma conversa permanente e de trocas úteis para a anatomia do nosso corpo urbano e para a autonomia e a saúde dos corpos humanos.