Há um mito em circulação que blinda a existência de Trumps e bilionários planeta afora: a ideia obtusa de que a existência deles traz mais benefícios do que miséria. Não raro, vemos a defesa intransigente e fascinada deste modelo meritocrático tão injusto. Por um lado, o pensamento de que bilionários como Musk, Zuckerberg, Bezos e Gates funcionariam como usina de emprego e desenvolvimento. Sim, é parte do assunto que haja trabalhadores, desenvolvimento e tecnologias. Por outro, o esquecimento e/ou ignorância dos sistemas exploratórios de produção e extrativismo ambiental pesado, mais geradores de miséria do que empregos e incremento tecnológico sejam capazes de compensar. Falo de vidas, é claro, para quem ainda se importa, independente da localização social, religiosa ou geográfica.
É parte do sistema de obliteração do pensamento a presença do milionário de estimação, querido pela classe média como um merecedor; endeusado justamente por aqueles que sustentam o seu sucesso. Um verdadeiro esquema piramidal que vende a ilusão de que o topo da pirâmide é acessível a todes. Não vou me dar ao trabalho de entrar em números e falar do quanto o racismo e o patriarcado são essenciais para que esta roda gire. Hoje quero pensar no fundo arcaico da admiração destes “homens de bem” e de bens.
Quando Freud escreveu Totem e Tabu, publicado em 1913, forjou um mito chamado pai da horda primitiva. Tratava-se da existência primordial de um senhor com um poder de desmandos absolutos. Alguém à prova de qualquer prova, de qualquer limite e limitação, dispondo de recursos e corpos ao seu bel-prazer. Naquele contexto, não existia a proibição do incesto e toda a tribo estava submetida ao regime totalitário que deixava corpos à disposição e exclusividade deste indigesto pai. Apesar desta última característica, os irmãos – a frátria –, em um esforço de libertação, assassinaram este pai e realizaram o chamado banquete totêmico. Sabemos que, arcaicamente, comer o inimigo é introjetar suas forças e qualidades. Com este mito, Freud sintetizou a compreensão de que, embora a civilização necessite da ruptura com a tirania para poder avançar, a cada tanto, o psiquismo manifesta uma certa nostalgia desse passado mítico.
O patriarcado inteiro cabe nesse mito, pois os irmãos associados para assassinar o pai preservaram a mãe e as irmãs do contato sexual – proibição do incesto. Contudo, podemos inferir o resíduo destes restos absorvidos daquele pai mantido vivo e glorificado em cada estupro, em cada tirania, em cada arroto e admiração de tiranos como Trump, Bolsonaro, Milei e suas pornocracias panamericanas. Cada dia uma mentira, cada dia uma fala que desconhece a anterior, pois o pai soberano não necessita de coerência, mas de sustentação e paixão enceguecedora.
Esse tipo de pai, no estilo do Velho Testamento, não é o modelo de Lula. Esta é uma questão mais atrelada ao imaginário cristão: o pai dos pobres que divide os pães, compreensivo, acolhedor e sempre disposto a perdoar: é um painho o nosso presidente. O problema é que isto não resolve muito as coisas como gostaríamos, porque ainda é esperar muito de um pai. Submersa no mais inebriante individualismo, a fratria esqueceu que é irmandade, entorpecida pelas redes “antissociais”: verdadeiras usinas de misérias. Nelas, a horizontalidade e a coletividade tornaram-se palavras quase sem uso positivo, enquanto vamos nos esquivando desta enxurrada de fake news. De fato, um aniquilamento da categoria verdade, já que esta passou a ser aquilo que se tem vontade de consumir.
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Foto da Capa: Gerada por IA.