Para a minha própria vergonha, há pouco tempo venho me dedicando com afinco à leitura de autoras negras, ainda que seja uma. Para a minha própria vergonha, também é recente o meu mergulho no universo intelectual LGBT, embora, tantas vezes, essas foram as minhas melhores pessoas; as que melhor leram as minhas chatices normativas sem preconceito, nem véu. Para a minha própria vergonha, há ainda menos tempo tenho olhado sem condescendência para pessoas neurodivergentes, com deficiência física ou funcional, apesar de que algumas que cabem nessa descrição estejam na minha família.
Minha formação inicial ensinou-me a ver, escutar e acolher tudo isso nos outros, porém, como se tivesse pouco ou nada a ver comigo. Tudo foi muito cuidadoso, mas com uma ética que resguardava distâncias no cuidar. É evidente que, em algum nível muito íntimo e pessoal, não tinha mesmo a ver comigo e era bom que eu soubesse disso para não usurpar daquilo que é do outro. No entanto, é só no contraponto, no contraste, que o divergente aparece, então, nós também aparecemos. Daí que essa ideia de acolher desde um lugar isento não passa disso mesmo: uma ideia. E das fracas.
É muito fácil ser profissional de saúde e/ou psicanalista quando se olha e se escuta desde esse lugar da isenção, um lugar protegido. Difícil mesmo é se deixar conduzir pelo humano refratário à teoria e às disciplinas, mas é preciso. Por que é que tudo o que não está previsto na teoria deveria se curvar à teoria? Essa é uma pergunta para manter no bolso em várias áreas, não só nas humanas. Nem por isso precisamos roubar o protagonismo da dor das pessoas, quer sejam nossos entes, quer sejam pacientes. E, aliás, nos dois casos, como são pacientes aqueles que acabam tendo que lidar com a nossa soberba curandis.
Há alguns anos, o convite que tenho aceito e realizado para quem posso é o de olhar para o lado em busca do outro, mas já não como um desviante, alternativo ou deficitário à espera do bálsamo da minha intervenção. Ao contrário, atualmente sou eu quem carrega uma espera inquieta pelo divergente que me desafie, que desassossegue os esquemas, os conceitos e os paradigmas. Que, por fim, rompa a imagem de um narciso que, no fundo, acha feio o que não é espelho.
A vergonha é alheia por pura projeção, mas ela é também minha porque sei que tenho a ver com a representatividade e a diversidade a cada manifestação pública e privada. E vai dar certo e também vai dar errado, mas, doravante, sempre vai ter a ver comigo, mesmo que não seja exatamente a minha dor. E, por sinal, quem é que pode mensurar exatamente a minha dor?
Foto da Capa: Freepik
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