Que o Brasil é formado em sua maioria por pessoas negras e pardas que possuem uma cultura e identidades invisibilizadas já estamos cansados de saber. Que, durante os mais de 50 anos da Rede Globo, a narrativa construída em relação as pessoas negras como empregadas, babas, porteiros, bandidos, moradores de comunidades se prestaram a reforçar o racismo estrutural e simbólico, também já está bem documentado em vários estudos de comunicação e semiótica. Mas estamos vivendo novos movimentos, como chamamos em estudos de tendências e futuros: a emergência de um conteúdo preto. Vem comigo que te explico esta descentralização de narrativa que é uma tendencia de futuro. Mas antes eu quero voltar no passado.
20.01.1994: no palco do Salão de atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cerimônia de colação de grau, os novos Bacharéis em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, Publicidade e Relações Públicas, reunidos nos mesmos momentos, e que escolheram como paraninfo o jornalista Fernando Gabeira, com uma plateia formada por pais e familiares daqueles jovens ingressando no mercado da comunicação. Naquela plateia estavam empresários, generais, professores, digamos assim, a nata da sociedade gaúcha. E a turma revolucionária, que escolheu uma menina preta, vinda de uma família pobre, periférica, e a primeira a se formar em uma universidade federal de toda a sua linhagem familiar. No caso esta que escreve o artigo que você lê: euzinha.
Naquele dia erámos dois: eu e um colega retinto que era de uma turma avançada e eu não conhecia. E o discurso que eu havia escrito foi aprovado pela nossa comissão de alunos e falava de que havíamos nascido sob a ditadura, mas que como a nova juventude íamos cuidar para nunca mais voltar a ela. Que tínhamos sonhos de um país livre, democrático e inclusivo. Que respeitasse as diferenças culturais. Que nos comprometíamos em usar a comunicação para construir novas histórias e contar as histórias que podiam inspirar a evolução de uma país democrático. Gritamos juntos com nosso paraninfo: Ditadura nunca mais. Claro… citávamos a Globo sempre onipresente, pois afinal estudávamos os simbolismos que as novelas produziam. E já falamos de um futurismo: os estudos de internet que estávamos realizando e teria o poder de descentralizar as informações. Me lembro que enquanto eu escrevia aquele discurso eu pensava: e o pai da nossa colega que é general? E o diretor da sucursal da Globo que está aqui? Como vai impactar? Mesmo assim eu discursei… eu vibrei.
Naquele discurso ainda não havia a palavra diversidade. Mas já havia respeito às diferenças e sobre a comunicação estimular o reconhecimento da verdade e da livre expressão.
O discurso foi aplaudido de pé. Eu usei minha voz naquele momento solene. E eu ainda nem tinha a dimensão do que estava representando e do que viria depois.
Corta. Janeiro de 2023. 29 anos depois. E ainda uso minha voz. A tal internet que era foco dos nossos estudos está aí plena balançando o império da Rede Globo que corre para beber em novas referências e se tornar multitelas. E a internet, ainda, avança gerando muito impacto, novas vozes, espaços, descentralizando narrativas, mas também muitas fakes News, e se reconfigurando para a Web 3.0.
A democracia chegou a ser ameaçada de novo, mas ainda há quem se junte e levante a voz e a caneta como o ministro Alexandre de Moraes, meu contemporâneo de juventude.
Abro o Instagram e vejo um vídeo da minha bolha de narrativas afro emergentes, ou seja, influenciadores e pessoas pretas que assim como eu buscam fazer as microevoluções necessárias, e um deles com o vídeo no canal Africanizei diz o seguinte:
“Por que a Globo acertou finalmente com a novela “Vai na Fé.”?
Chega aí que vou te dar 5 motivos:
Um elenco completamente preto, visto que boa parte da população brasileira é negra e quer se ver representada em produções audiovisuais. E não só aquela mistura de Polonia com Rio de janeiro que estava aparecendo na tela da gente nos últimos 50 anos.
Coisas normais de gente como a gente. Com personagens falando sobre Prouni, funk. Igreja, marmita. Não mais aquela coisa de café de manhã com suco de laranja e empregada feliz. Acabou esta fase. (tomara)
Cirillão da massa com referências à Carrossel. E pelo o que entendi ele também vai estar correndo atrás de mulher.
Sheron Menezes e Samuel de Assis. Nem precisa falar mais nada. (10s protagonistas negros em toda a história das novelas)
Música. Além de trazer hits atemporais do funk. Tem Negra Li fazendo a abertura com música inédita.
Tá bom ou quer mais? Na verdade, eu quero mais.” Diz o vídeo.
A Sinopse da Novela não explora a questão da representatividade, e sim da narrativa de esperança e luta. Porém para a comunidade negra o significado vai muito mais além pois retrata a vida de uma mulher negra tipicamente brasileira, e suas batalhas neste país.
A personagem Sol (Sheron Menezes) nas batalhas do dia a dia, com a sua família, formada pela mãe Marlene (Elisa Lucinda), o marido Carlão (Che Moais) e as filhas Duda (Manu Estevão) e Jenifer (Bella Campos), a primeira universitária dessa família multigeracional. Sol canta no coral da igreja desde a infância. Na juventude, sem que os pais soubessem, ela frequentava os bailes funks que marcaram os anos 2000 e era conhecida como a princesa do baile, a gata das gatas! Hoje a família passa por dificuldades financeiras, com Carlão desempregado desde a pandemia. E é nesse momento que o acaso a faz parar nos palcos novamente..
Sol recebe um convite para trabalhar com Lui Lorenzo (José Loreto), um cantor pop e conquistador. Essa reviravolta na vida de Sol faz com que ela reencontre Benjamin (Samuel de Assis), sua paixão na juventude, e Theo (Emilio Dantas), de quem guarda más lembranças. Casado com Clara (Regiane Alves), Théo é um empresário de sucesso que esconde negócios escusos, sem que ninguém desconfie. Ben se casou com Lumiar (Carolina Dieckmann) e juntos construíram uma vida profissional bem-sucedida como advogados criminalistas.
Paulo Silvestrini, diretor artístico da novela, conta que a trama vai apresentar os conflitos de diferentes gerações e camadas socioculturais, dentro da diversidade do Rio de Janeiro. “É uma novela carregada dessa positividade tão característica do povo brasileiro, dessa certeza de que o amanhã será melhor. O ambiente é essa cidade plural e misturada, onde as diferentes gerações, culturas e identidades sociais se confrontam e convivem, adequando expectativas e revendo valores”, conta Paulo Silvestrini.
Para mim a história retrata muito mais que isto: a luta das mulheres negras, a onipresença das igrejas nas comunidades e seu papel de enquadramento, a luta do funk como gênero, e até o amor preto rompido, pois Samuel ascende socialmente e se casa com uma mulher branca.
“Vai na fé” talvez não seja um boom de audiência, mas com certeza já entrou na história como uma disrupção narrativa que aponta o início de um conteúdo preto sendo consumido de forma cultural massiva assim como outros etnias, e nos ajudará a revelar um Brasil que pulsa, existe e precisa se reconhecer. Finalmente vislumbrando o início do que sonhávamos a 29 anos atrás naquele palco da UFRGS.