A cinza só consegue me provar a existência da chama
Victor Hugo
Na quarta-feira passada, o pug de dois anos e meio, Pudim, morreu. Foi para o céu encontrar Rin Tin Tin, Lassie e outros tantos cachorros que, por fazerem o bem, encontram um céu de planícies verdes onde podem enterrar seus ossos. Foi meu filho Eduardo quem, há poucos dias, havia se tornado seu tutor. Ele fez todos os preparativos para receber bem Pudim: levou ao médico, deu as vacinas, comprou apetrechos como cama, coleira e alimentação. Ele retribuía com afeto: já estava em casa.
Chegou o dia para fazer a castração. Em uma clínica da zona norte, Pudim foi levado na certeza de seu tutor de que podia ser algo difícil, mas ia ser benéfico. Todos os veterinários dizem isso. Ele fez os exames exigidos e fez a cirurgia. Após a cirurgia, estava devidamente medicado e vestido com a roupa apropriada. Na noite do mesmo dia, o impossível aconteceu e ele faleceu. Não sabemos as razões. Exames estão em andamento que dirão as razões de seu óbito.
No mundo, a morte é uma merda. Resta apenas que ela se compadeça e chegue o mais tardiamente que puder. Que não se apresse. Se puder esquecer de vir, seria o ideal. Nos compadecemos daqueles que perdem entes queridos. Milhares de animais morrem todos os dias na indústria mundo afora e não nos compadecemos, como nos lembram os veganos, mas a verdade é que os tempos modernos fizeram com que tivéssemos mais afeto pelos animais que estão perto de nós do que em épocas passadas, talvez porque esta seja uma era de extrema solidão – viu, você que está aí lendo este texto no celular? Eu fico triste e revoltado porque no mundo ainda matamos nossos semelhantes, como em Gaza. Mas fico, como todo mundo, muito triste quando perco meu animal de estimação. Como diz o nome: é um animal que estimo. Com a morte de Pudim, como diz a menina no meme da Xuxa: “Que mundo é esse?”
Pudim tinha muito a nos ensinar sobre política. Pois ele nos falou muito enquanto esteve por aqui, da sua resignação às duras necessidades de sobrevivência. A casa de meu filho não era a primeira que o abrigava, ao contrário, era a terceira. Ele parecia viver a vitória da paz provisória em um lar em que foi acolhido com carinho e amor. Ele sabia retribuir a Eduardo o carinho que recebia; também não era de falar, (digo) latir a torto e a direito, era mais de ouvir do que falar como devem ser os bons políticos. Parecia ser mineiro. Ele nos visitou em nossa casa uma vez: enquanto nossa poodle Nina latia sem parar, ele olhava como se dissesse: para que tudo isso? A verdade é que Pudim ajudava Eduardo, diminuía sua solidão pelo simples fato de levá-lo para passear no Parque Germânia.
Pudim não era desses animais dominados pelo instinto. Se você tem um cachorro, sabe que ele tem a sua personalidade. Não há como negar o caráter artístico de seus movimentos, quase como se fossem acrobacias. O problema difícil de que fala o cientista David Chalmers, o da consciência, nos espreita. Eu sei que ele pensa como humano, mesmo que a ciência diga o contrário. Em minha casa, Nina sabe exatamente a hora em que Eduardo chega para almoçar. E fica à espreita na porta, o aguardando.
Pudim era meio quietão, mas era esperto. Tinha seu olhar encantador. Sua esperteza lembra Bi, o cachorrinho que apareceu na Copa do Mundo de 1962, no Chile, quando a seleção tinha Pelé, que teve de sair logo no início por uma contusão, e só ficou Garrincha. Bi invadiu o campo, driblou os jogadores, inclusive o astro da seleção, que depois o adotou. Mas talvez Pudim esteja mais para Laika, a cachorra mandada para o espaço em 3 de novembro de 1957. De uma certa forma, agora ambos estão no mesmo lugar, o firmamento, onde por razões diferentes foram lançados.
Quando morre um animal de estimação, um pouco de nós morre junto. Quando Kely, a Yorkshire tutelada por minha esposa Denise, faleceu, choramos muito. Ela havia compartilhado 15 anos divertidos e encantadores conosco. No último ano, quando adotamos Nina, ela cuidou para que a pequena poodle aprendesse tudo para sucedê-la, como se estivesse preparando sua própria morte. Ela não queria nos deixar sós no mundo. Não somos nós que cuidamos dos animais, são eles que nos cuidam.
Pudim deixou Eduardo aos prantos. Sofremos porque a morte é a linha de demarcação social que separa os vivos dos mortos, inclusive de animais. Não existe “vivo” sem “morto”, e somente nossa loucura é capaz de construir um mundo que reprime a morte. Não é o inconsciente que é reprimido, diz a psicanálise, é a morte. Por isso, estar diante do corpo morto, do animal de estimação morto, nos paralisa. Por isso, a ritualizamos, fazendo a iniciação, a operação simbólica de separação: velamos nossos mortos. Mas não velamos ainda nossos animais mortos, e por isso, a dor é maior.
“Dize-me tua relação com a dor da morte de teu animal querido que te direi quem és”, para parafrasear um ditado do filósofo Ernest Jünger. O verdadeiro luto passa pelo sofrimento da dor da perda. Só assim você é capaz de resgatar seu simbólico e continuar a viver. Vale para tudo e todos e acredito, inclusive seus animais de estimação. Em nossa sociedade, somos agofóbicos: rejeitamos a dor. No passado, as comunidades faziam com que ela fosse uma espécie de troca. Ficamos angustiados e logo vamos aos analgésicos e medicações. Mesmo na dor da perda de nossos animais de estimação, há algo em troca: as lembranças. Por isso, da morte natural, aleatória, acidental e irreversível, passamos para uma morte dada e recebida, como nas sociedades ancestrais. Somente quando aceitamos que podemos trocar algo com a morte, temos condições de elaborá-la. Pudim morreu, ele podia nos fazer mais felizes por mais tempo, mas o pouco tempo em que esteve aqui deixou memórias, recordações. Lembramos de nossos pais que morreram através das lembranças, e reelaboramos nosso luto.
Pudim morreu e desorganizou a vida de Eduardo e de nossa família. Sua perda é sentida. Estamos esfacelados, mas a morte é tão traumatizante quanto o nascimento. Morrendo, Pudim nos ensina a nos relacionarmos com a morte. Reconhecer a mortalidade canina nos ajuda a reconhecer a nossa própria mortalidade. Você não quer que seu animal de estimação morra, mas se ele morre, você avalia o tempo em que ele passou de vida com você. Ele ensina a aproveitar as menores frações de tempo, pois podem ser, sem você saber, únicas. Nós choramos a morte de Pudim, e com isso, reconhecemos que o ser humano é frágil. Se esquecemos também que somos mortais, somos levados para o outro lado, o do crescimento do ego, do engrandecimento absoluto.
A casa de Eduardo agora tem um silêncio. O cão, com seu respirar, já ocupava um espaço. Quando latia ou brincava com a nova cama, já estava ocupando um lugar naquela casa. Passado o luto, o silêncio deverá ser quebrado pelo latido de outro cão, sinal de que a hospitalidade de meu filho continua de pé. Ele aprendeu a conversar com os animais. Ele já pode dizer: “Seja que cachorro você for, entre, serei seu tutor, você pode latir, fique quanto puder. Você é meu novo hóspede”. Nesse momento, os sons da respiração de Pudim serão substituídos por outro. O do vazio.
Quando adotamos um cão, é nossa hospitalidade que é posta à prova. Nina vive comigo e minha esposa há mais de 8 anos; minha sogra tem Luke por mais ou menos o mesmo tempo. Eles têm um espaço em nossa vida, aprendemos uns com os outros, principalmente a virtude da paciência e da espera. Eduardo caminhava com Pudim e o esperava fazer as suas necessidades. Isso nos torna mais serenos, nos obriga a parar e sair da correria dos dias. Essa é uma sensibilidade notável que os animais nos ensinam. Sair todos os dias de casa para passear, você passa a compreender melhor os sentidos da vida por isso.
A morte de Pudim deveria acontecer como a nossa, quando a vida tivesse sido plenamente vivida e encerrada. Mas um motivo desconhecido nos tirou toda a possibilidade de vida de Pudim, ele morreu fora da hora, é a sensação que ficou. No mundo neoliberal em que vivemos, tudo existe e nada termina. Aprendemos pela incessante realimentação das redes sociais que a vida parece não se encerrar. A morte de Pudim nos lembra do contrário.
A mim só resta consolar Eduardo. Consolar alguém que perdeu seu cão estimado é difícil, e nada garante que se possa chegar ao fim. Eu só posso primeiro consolar dizendo: “Estou aqui com você enquanto precisar” – consolação pela minha presença; depois dizendo: “Pode contar comigo, pois quero aliviar sua dor como puder” – consolação pelo apoio afetivo; e o simples “vou lhe ajudar como melhor puder”, o apoio material que sempre damos nessa situação de tristeza.
A sabedoria popular diz que “nada acaba para sempre; basta uma felicidade para tudo recomeçar”. Os gregos tinham a palavra Aorásia para designar a aparição de um ser divino que só era conhecido no momento de seu desaparecimento. A memória de Pudim vivo frente a seu desaparecimento evoca este instante, nos consola frente à desolação da perda, ocupa um espaço dentro de nós. Que sirva de consolação a quem perde algo que estima, que podemos aceitar nos deixar comover pela perda, preservando a memória daquele que esteve entre nós, mesmo que seja por breves instantes.
Foto da Capa: Acervo do Autor
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