Nos últimos tempos, tenho gostado muito de ver reality shows ruins.
Por mais que eu realmente goste dos seriados e filmes cults, tem dias que eu só quero chegar em casa, me jogar no sofá e jantar vendo pessoas horríveis fazendo coisas vergonhosas.
Talvez isso me sirva como um espelho invertido: quando vejo essas pessoas completamente despreparadas para lidar com as mais simples dificuldades da vida, me sinto alguém com mais controle da minha própria rotina. Aquele alívio constrangedor que sentimos quando vemos alguém caindo no meio da rua e estamos ainda em pé, caminhando firmes.
Mas também, vendo estes programas, não consigo não deixar de fora o meu lado psicanalista. Ainda que eu saiba que aquele elenco é escolhido a dedo, creio que as pessoas que estão ali também representam uma boa parcela da população. Ou pelos que exacerbam questões que estão na cultura de forma mais dispersa.
Por exemplo, recentemente assisti a um reality show espanhol chamado “Amor: verdade ou consequência”, tradução que acaba perdendo o trocadilho do título original “Amor con fianza (amor “com prêmio” / amor “confiança”) (Foto da Capa).
O título já diz bastante: trata-se de um programa em que casais (em relação monogâmica, importante sublinhar), no começo dos seus vinte anos, são divididos em dois grupos que passam a conviver em casas separadas em uma ilha paradisíaca qualquer. Como a ideia é testar a confianza dos pares, aos poucos algumas complicações vão sendo adicionadas: ex-namorados e antigos interesses amorosos são convocados a fazer parte do programa, por exemplo.
Além disso, os parceiros têm direito de ver relances do que o outro está fazendo, mas os vídeos são claramente editados para passarem a ideia de que aconteceram traições (o que, boa parte das vezes, realmente acontece). Para assistir à versão premium e mais caliente do vídeo é preciso pagar um tanto do prêmio geral que será distribuído para todos os participante ao final (a tal fianza), reduzindo, assim, a valor final do mesmo.
Mas a coisa não para por aí: encontraram uma forma de colocar no reality um detector de mentiras, um aparelho que supostamente consegue ver se alguém está ou não mentindo através dos movimentos da pupila daquele a quem são feitas perguntas como “Você já pensou em trair seu namorado?” ou “Você já se imaginou transando com fulano de tal?”.
O objetivo, claro, é provocar a maior desconfiança possível.
Deixando de lado o aspecto moralista da questão (não se pode sequer pensar em uma situação, como se o devaneio também precisasse ser controlado), me interessei mesmo pela forma como aqueles participantes justificavam tanto as traições reais quanto as imaginadas. O discurso é sempre o mesmo: “Fiz porque eu preciso aproveitar tudo o que a vida tem pra oferecer”. Aliás, o próprio lema do programa, tantas vezes repetido pela apresentadora, é justamente: “Não se esqueçam, desfrutem tudo”.
Retrato bastante fiel de uma época em que tudo nos parece estar disponível o tempo todo, em que nos sentimos deficitários quando não estamos aproveitando tudo, este reality show nos serve como um bom analisador dos imperativos que nos organizam como sociedade. Desfrutar, aproveitar, gozar a vida, viver tudo intensamente, não perder nenhuma oportunidade… enfim, todas essas variações da ideia de que o mundo é uma grande máquina produtora de satisfação. A realidade como um cardápio que precisa ser todo experimentado para, então, podermos saber o que nos apetece ou não. Algo que surge na fala de muitos participantes com afirmação do tipo: “Como vou saber se quero realmente seguir com fulana se eu não experimentar ficar com outras pessoas?”. Ainda que estejamos falando de uma exacerbação, este não é um discurso muito incomum de escutarmos por aí.
Só que tem um problema nisso: onde fica o outro neste papo?
Vemos aí a construção de uma relação com o mundo centrada no indivíduo, uma forma de estar na vida em que as próprias emoções são a diretriz ética de como conduzir as escolhas e decisões. É uma das derivações da proposta neoliberal de que todos devemos ser autênticos e verdadeiros conosco mesmos e com nossos sentimentos.
Claro que cuidar de si é importante, mas o risco é que este autocuidado (palavra que está tão na moda) se confunda com um apagamento do outro e, consequência óbvia, esgarçamento do laço social – laço que supõe que o outro seja contabilizado na equação da vida.
Quando nos tornamos a única referência a ser levada em conta – “Se eu sinto que devo conhecer outras pessoas, então eu devo fazer isso, independente do meu parceiro” -, acabamos sendo protagonistas de um esvaziamento ético do mundo, cúmplices da construção de uma realidade cada vez menos compartilhada. O outro surge como um obstáculo a ser evitado ou superado, não como alguém que segura uma das pontas do laço.
Também se ignora aí a inelutável incerteza que é a vida: a bem dizer, nunca temos assim tanta certeza do que queremos ou não. Supor que seja possível fazer escolhas sem que haja uma dose de aposta é uma promessa de um mundo que cada vez mais se apresenta para nós como uma fórmula a ser seguida, e não uma aventura a ser compartilhada.
Um mundo em que somos convidados a sermos profundamente covardes e em que supomos estarmos respondendo a uma prova de múltipla escolha em que haveria um caminho certo a seguir.
Não há.