Uma das coisas que eu admiro no pensamento é sua capacidade de voar e sonhar. A Feira do Livro deste ano, entre tantas alegrias, me trouxe o livro Anticristo, de Nietzsche, que, até onde eu me lembre, nunca tinha lido. Nesse livro, uma frase fez meu pensamento voar, sem conseguir segurá-lo: “A primeira medida cristã após a expulsão dos mouros foi o fechamento dos banhos públicos, dos quais apenas Córdoba [está falando da Espanha] possuía 270”. Repito: 270 banhos públicos fechados em uma única cidade!
Peninha, no seu livro Passado a Limpo, uma história da higiene pessoal no Brasil, explica bem essa história da aversão cristã aos banhos públicos por pudor moral que acaba descambando para a inédita aversão – na humanidade – à higiene pessoal. A Igreja propagava, entre outras maluquices, que os banhos abriam os poros da pele para doenças. Pode parecer incrível, mas tenho lembrança de já ter ouvido essa frase: muito banho faz mal para pele…
A medicina do século XIX do Ocidente só veio a trazer de volta procedimentos de higiene quando descobriu, vejam só, que procedimentos simples como lavar as mãos antes de uma cirurgia evitavam infecções e mortes. Os norte-americanos levaram essa questão muito a sério e transformaram, através de seu poder de publicidade e mídia, a ducha em novo hábito diário. Junto com ela veio, é claro, toda uma indústria de produtos para higiene, como sabonetes, xampus, dentifrícios e tudo o mais que já faz parte das nossas compras cotidianas.
Com a vitória dos aliados, a Europa assistiu atônita no pós-II Guerra essa estranha mania dos americanos. De lá pra cá – hoje cada vez mais raros, é verdade –, os donos das pensões europeias baratas passaram a viver em sobressalto quando chegava um hóspede americano. A solução foi passar a cobrar os banhos à parte e com limitação de tempo. Banho, lá, era luxo a ser cobrado.
Hoje eu rio quando lembro das broncas que ouvi em alguns hotéis da França por ter demorado tempo demais no banho ou das observações maldosas que os donos das pensões faziam a essa necessidade “doentia” de se lavar.
Enquanto rimos da nossa superioridade higiênica dos nossos corpos, em relação aos europeus, é preciso lembrar que muitos brasileiros ainda vivem como na Idade Média. E não por religião ou opção. Simplesmente porque não tem acesso a um chuveiro. Sim, simplesmente não tem acesso a ele. Esse misto de prazer e saúde, assim como a alimentação e o saneamento básico, não está disponível a todos em nossa sociedade.
A frase do Nietzsche saltou do contexto da sua digressão, de suas causas religiosas e tudo o mais, para bater com força numa pergunta que me faço há bastante tempo: o que custava nossas cidades oferecerem banhos públicos para quem não tem casa, vive na rua ou não tem chuveiro? Seria tão difícil separar um pedacinho de terreno dos parques públicos e outros vastos terrenos livres que vemos em todas as cidades para disponibilizar uma das condições básicas da dignidade humana: a higiene? A outra, sem dúvida anterior, é a alimentação e a posterior roupas limpas.
E banheiros públicos, vocês vão dizer! Certíssimo, que cidade é essa que não oferece banheiros públicos e ainda quer privatizar os poucos (pouquíssimos) que existem? Podíamos aprender um pouco com o Japão, podíamos ser um pouco mais humanos e civilizados. Os que têm um chuveiro à disposição – quente no inverno – sabem do que estou falando. Tem coisa melhor do que uma chuveirada depois do trabalho, do esporte, de um dia quente, do lazer ou do amor? Tem princípio maior de civilidade e sociabilidade do que permitir que todo cidadão tenha direito a um bom banho?
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Foto da Capa: Banho romano em Bath, na Inglaterra. Diego Delso / Wikimedia Commons