Toda mudança causa desconforto. Mas mudamos, é um imperativo existencial. Nada é estático, tudo se transforma, desde as formas de energia, que se convertem umas em outras, até o comportamento humano. Somos a espécie mais habilitada à mudança, pois existimos anteriormente à nossa essência, diferente dos animais, que nascem determinados. Ainda assim, muitas vezes mudamos aos trancos e barrancos, sem vontade, sem convicção, sem a grandeza de que somos portadores.
Carregamos em nosso DNA os tempos animalescos, que talvez nos guiem no senso primitivo de escassez e rejeição ao risco, no medo e suas perversões. “Farinha pouca, meu pirão primeiro” e guerreamos selvagemente uns contra os outros. Mas é uma regra ilógica, o planeta é potencial. 98% de nosso DNA é análogo ao dos primatas nossos ancestrais como os chimpanzés e os bonobos. Os chimpanzés podem guerrear como nós, já os bonobos resolvem tudo de outra forma. Quando a desconfiança ou o medo surge, os bonobos partem para uma negociação na base da troca de energia, se valendo do corpo para acalmar os ânimos: se tocam, se acariciam, se esfregam uns nos outros e, devido aos gritinhos, acredita-se que cheguem a ter orgasmos. Daí, para que guerrear? O resultado de qualquer guerra é catastrófico. É só dor. Para nós, significa desonrar a construção humana. Só quem lucra com guerras é o sistema industrial de armamentos e de reconstrução de cidades arrasadas – a lógica do dinheiro, rola mesmo MUITO dinheiro. Depois de inumeráveis guerras sangrentas, já podemos realizar que somos humanos no prazer e não na dor – é aí que mora a diferença.
Sigmund Freud entendeu o princípio do prazer quando passou a estudar a sexualidade infantil. Levou o assunto à discussão científica, mas ninguém quis saber e o deixaram falando sozinho na conferência que proferiu aos seus pares, em 1905. Tabus demais, dogmas demais, enraizados até as nossas vísceras. Mas a despeito da acirrada oposição, Freud persistiu, falando do prazer do bebê quando suga o seio da mãe, de quando é abraçado no colo quentinho do pai; da curiosidade da criança quanto ao seu corpo e o corpo do outro, que explora através do toque, das sensações.
“Os órgãos de reprodução propriamente ditos não são as únicas partes do corpo que geram sensações de prazer sexual, e que a natureza dispôs as coisas de tal forma que as estimulações reais dos genitais são inevitáveis na primeira infância. Esse período de vida, durante o qual uma certa cota do que é sem dúvida prazer sexual é produzida pela excitação de várias partes da pele (zonas erógenas), pela atividade de certos instintos biológicos e pela excitação concomitante de muitos estados afetivos, é conhecido como o período de autoerotismo, para usar um termo introduzido por Havelock Ellis (1898). A puberdade apenas concede aos genitais a primazia entre todas as outras zonas e fontes produtoras de prazer, assim forçando o erotismo a colocar-se a serviço da função reprodutora”, escreveu Freud em uma carta aberta ao Dr. M. Fürst, e fez a derradeira pergunta: “O que se pretende com a desinformação das crianças e adolescentes, com o silêncio, a respeito da sexualidade?” Ele passou a defender a atenção dos educadores e reformadores: “Considero um avanço muito significativo na educação infantil que na França o Estado tenha introduzido, em lugar do catecismo, um manual que dá à criança as primeiras noções de sua situação como cidadão e dos deveres éticos que deverá assumir mais tarde. No entanto, essa educação elementar continuará com sérias deficiências enquanto não abranger o campo da sexualidade.”
Wilhelm Reich, discípulo de Freud que o seguiu nessa investigação, relacionou o princípio do prazer na infância com toda a nossa relação com o mundo. Ele mostrou que a supressão da sexualidade nas crianças pequenas e nos adolescentes é a principal maneira de garantir uma obediência à autoridade da família, ao homem que alienou-se a si mesmo da vida, crescendo hostil a ela, uma alienação não de origem biológica, mas sócio econômica. Para Reich, a unidade e congruência de cultura e natureza, trabalho e amor, moralidade e sexualidade continuaria a ser um sonho enquanto o homem continuasse a condenar a exigência biológica da satisfação sexual natural (orgástica). “A democracia verdadeira e a liberdade baseadas na consciência e responsabilidade estão também condenadas a permanecer como uma ilusão, até que essa exigência seja satisfeita. Uma sujeição sem remédio às condições sociais caóticas continuará a caracterizar a existência humana. Prevalecerá a destruição da vida pela educação coerciva e pela guerra”, escreveu Reich, em 1927.
Na trajetória existencial, nas mudanças do corpo e da mente desde a infância até a velhice, podemos eleger o prazer preservando/cultivando o encanto nato pela vida. O universo infantil é puramente sensorial e, se a criança não tiver fome e sede, tudo pode ser sensual e prazeroso. Chupar uma laranja ou se lambuzar com uma manga, o banho de chuva, nadar no rio misterioso ou pular ondas espumantes no mar, o banho de sol, o corpo estirado na areia, uma leve brisa carregada de maresia que inunda os pulmões, o céu azul com desenhos das nuvens, o relaxamento total, a paz. A criança usufrui totalmente do prazer sensorial do seu corpo, pois está alheia à corrupção sexual e social do mundo dos adultos.
O ato sexual já foi amplamente reconhecido e ensinado por muitos povos antigos como caminho de conexão com a vida, mas foi sendo cada vez mais oculto e demonizado. Podemos – devemos – resgatá-lo em todo o seu alcance. A união sexual tem o poder de elevar a frequência vibracional do nosso corpo, desde o nível genital e da barriga, onde normalmente deixamos se cristalizar a energia sexual, subindo pela espinha até o coração e além dos centros superiores do cérebro, no chakra da coroa, como definem os hindus.(*) Adentramos no Olimpo, liberando um grande fluxo de energia que estimula diferentes partes do corpo e não apenas a região pélvica. Sexo é emitir e receber energia de forma profunda, é encontrar no outro a plenitude de nossa intimidade, de nosso Ser, é prazer e amor como uma só experiência. É construção da vida.
Depois das duas grandes guerras, o mundo, em choque, começou uma mudança através dos movimentos por paz e amor, deflagrados pelas jovens gerações. A abrangência foi crescendo diante de novas demandas, como as da urgência climática e das tecnologias exponenciais, e envolvendo pessoas de todas as idades e de diversas etnias, que buscam cada vez mais elevar a consciência. Mas muitos de nós continuamos avessos à mudança, sempre presos ao medo e suas consequentes perversões. Com tal ordem de mudança em curso neste século XXI, a reação era previsível, terrível. É o que o filósofo Antonio Gramsci já esboçara em seus Cadernos do Cárcere: “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e, nesse claro-escuro, irrompem os monstros”.
Nesta semana de profunda dor com mais uma guerra, de Hamas e Israel, assisti uma aula com o sociólogo e filósofo Michel Maffesoli, em que esse grande estudioso da pós-modernidade se alinha com Gramsci: “Existe um desespero inconsciente na oligarquia político-midiática. Esses atores pressentem, não de maneira consciente, que o fim deles está próximo. Quando isso ocorre, as pessoas se tornam, de certa forma, mais violentas – combate de retaguarda. Isso pode ser considerado o momento de saturação para o poder vigente.” À confrontação bárbara entre o grupo terrorista Hamas, que recebe apoio do Irã, e o governo mais extremista da história de Israel, que tem apoio dos EUA, soma-se a devastadora guerra de Rússia e Ucrânia que não tem fim, a China cada vez mais belicosa com Taiwan, a Índia que abraçou um nacionalismo virulento, a ofensiva das extremas direitas que vem arrebatando mentes, a escalada da polarização na sociedade, etc., etc. e ferve o caldeirão com a substância fétida que já conhecemos. Precisamos de grandeza para mudar, urge o nascimento do novo mundo – não suportamos mais que matem nossos filhos e filhas, não suportamos mais que aniquilem nossa vida.
(*) O conceito de Chakras teve origem na Índia, entre 1500 e 500 a.C. Chakra significa uma “roda giratória” de energia que sobe e desce a coluna vertebral. São sete chakras primários, transdutores de energia, cada um relacionado a diferentes funções emocionais e físicas no corpo humano. No mundo ocidental, conhecemos os Chakras na década de 1880 a partir das tradições da yoga. O chakra da coroa é o último dos sete centros de energia e representa a consciência espiritual e a transformação. Em sânscrito, é chamado de Sahasrara Chakra, “mil pétalas”, representado por uma flor de lótus de mil pétalas. O Sahasrara é o ponto de entrada para a vida humana, a força que se derrama no sistema energético do corpo a partir do universo.