Nessa caminhada na área do envelhecimento e longevidade que trilho desde 2014, de início tudo era mato. A gente falava sobre a mudança que haveria na pirâmide demográfica brasileira, no tsunami prateado, na necessidade de preparar a população para o envelhecimento e não havia eco em lugar nenhum.
O tempo passou e a realidade se impôs. No entanto, pouca coisa ou quase nada do que precisamos fazer para melhorar nossa realidade foi feita, apesar da legislação existente. Sinto que nesse período interesses de mercado têm falado cada vez mais alto em detrimento do que precisamos, como pessoas, cidadãos e sociedade, realizar para evoluir em benefício da população idosa e de todos que irão envelhecer.
Abaixo, vou abordar alguns aspectos críticos que venho observando no Ecossistema da Longevidade. Cada um, provavelmente, poderia render texto para uma coluna específica (talvez, um dia, até vá), mas despejei tudo numa só porque a urgência no meu coração era grande a partir de conversas que tive com amigas que também atuam na área da longevidade e envelhecimento, com as quais me reuni no período em que estive em São Paulo, recentemente.
A premissa idadista de que toda pessoa idosa é sábia e bondosa
Temos vários exemplos na história de pessoas acima dos 60 anos que causaram guerras. Pessoas que, aos 60, 70, 80+, provocaram danos financeiros, legais, fiscais para outras. Pessoas que, quando mais jovens, abandonaram e abusaram de suas famílias e, agora já idosas, cobram o que não ofereceram sem reconhecer ou reparar os equívocos do passado. Maturidade e sabedoria podem estar em qualquer idade. E esse é apenas um dos mitos existentes em torno da pessoa idosa. Rótulos, para qualquer idade, trazem prejuízos para as relações intergeracionais. Porque alimentam o conflito geracional em vez do encontro. O processo de ensino e aprendizagem pode acontecer multigeracionalmente, da criança para o mais velho, do mais velho para o adulto. E aí vejo muitos interesses alimentando as diferenças entre gerações do que potencializando semelhanças entre as pessoas de diferentes idades e as possibilidades delas se conectarem.
A exceção não é o padrão
Me deixa desconfortável quando vejo marcas, empresas, profissionais, influencers, etc. compartilhando conteúdos com pessoas idosas em corpos super musculosos e marombados, realizando feitos extraordinários, como correr ultramaratonas ou carregar dezenas de pesos, o que é exceção ao padrão médio, já que a maioria das pessoas jamais conseguirá chegar a essas “inspirações” na velhice. Provocando um sentimento de inadequação e, claro, necessidade de consumo do que estiver sendo anunciado, e a sensação de que, se é possível, quem está errado é quem não consegue atingir o feito.
A linguagem é intenção e revelação
Sério? Ainda estamos aqui? Congelamos no tempo? A juventude é linda, eu aproveitei a minha e espero que você também tenha aproveitado a sua. Mas ela passou. Olhemos no espelho. Lidemos com isso. Isso é real. Mas aí o tal “mercado” vai criando termos tipo “adultescente”, “ageless”, “anti aging”, que reforçam a ideia de que é lá na juventude que se encontra a felicidade. Mas como ressignificar isso? Uma delas é por meio da linguagem, encontrando novas palavras para descrever como nos sentimos e somos. Então, por exemplo, em vez de jovialidade, que tal utilizar vitalidade, curiosidade, energia, vigorosa/o, com alegria de viver, cheia/o de vida?
Porém, essa linguagem “real” não ajuda nas vendas. E o Senhor Mercado provavelmente não tem muito interesse em mudar essa visão idadista e jovencentrista na pessoa envelhecente e envelhecida. Afinal, essa indústria da beleza (atualmente ressignificada com o nome de bem-estar e cuidado), baseada nesses valores da juventude, faz com que mulheres (e homens também) consumam dezenas de produtos, lucrando bilhões, para seus rostos, mãos, pernas, cabelos, olhos, em diferentes formas e procedimentos.
A romantização da velhice
Tempos atrás, majoritariamente se ouvia falar mal sobre a velhice, de maneira pejorativa, inadequada. Ultimamente, parece que ninguém pode falar mal a respeito. Então, meio que se tornou “obrigação” afirmar que envelhecer é bom, que a velhice é linda. A verdade é que a opção de quem não envelhece é a morte. E ninguém quer isso. Mas precisamos olhar da maneira mais honesta possível para o processo de envelhecimento.
É claro que com o envelhecimento vem muita coisa boa! Mas com ele também vêm dificuldades, perrengues, processo de luto por conta das limitações que passamos a viver com as perdas que provocam, como as dos nossos corpos, por exemplo. Precisamos nos educar e educar as pessoas para se enxergarem e se prepararem para conviverem com uma velhice real, para que possamos lidar com a menor frustração possível, para o que der e vier.
Ela também não é igual para todos, pois as velhices são diversas, há a velhice negra, a feminina, a com dependência, a empobrecida, e todas as intersecções possíveis. E o Brasil é pródigo nelas.
No entanto, o que vemos sendo promovido, em grande parte da comunicação, são produtos, serviços pelo “Mercado” (olha ele aí, de novo”) em e para eventos voltados para a Economia Prateada e do Cuidado, atividades para um público 50+ de maior poder aquisitivo e educação formal acima da média.
O trabalho do inativo
A pessoa aposentada é invisibilizada e desqualificada em detrimento da pessoa que deseja trabalhar na pós-aposentadoria.
Por um lado, a pessoa aposentada, que usufrui de todo o tempo de contribuição que fez enquanto empregada, parece que se torna uma parasita, pois passa a ser chamada de “inativa”, como se trabalho se resumisse à remuneração formal. Ela pode estar limpando, organizando, lavando, consertando a casa, por exemplo. Ou realizando um trabalho voluntário. Ou cuidando dos netos. Em todas essas atividades, ela estaria trabalhando. Realizando atividades da economia do cuidado, não remuneradas, mas de grande valor para a sociedade. Mas ela ainda poderia estar realizando um sonho, como estar estudando. Ou mesmo viajando e de papo pro ar! Trabalhou a vida inteira, não ganhou esse direito?
Por outro lado, sinto que há uma idealização quanto às pessoas que trabalham após a aposentadoria, como se essas pessoas que optam em continuar trabalhando fossem aquelas com mais energia, mais inteligentes, tivessem mais valor para a sociedade. Afinal, optaram por “seguir adiante”. Escuto uma glamurização até mesmo quando isso ocorre com pessoas que buscam atividades precarizadas, como motorista de aplicativo.
Percebo também que o mercado formal resiste, apesar da grande demanda que há de pessoas mais velhas interessadas, especialmente as mais qualificadas, o que talvez nem tenha solução, pois até os mais jovens estão com dificuldades, pois existem cada vez menos cargos em níveis mais altos nas empresas. Elas hoje estão cada vez mais horizontais e mais enxutas.
Sinto que a escolha de continuar ou não a trabalhar deve ser pessoal e absolutamente individual. Quem sabe onde o calo aperta nos pés se não quem calça o sapato? No entanto, o que observo é que grande parte das pessoas que buscam atividades remuneradas após a aposentadoria o faz pela necessidade. Por que as aposentadorias são baixas? É uma explicação. Mas também porque a gente não é educado, desde a infância e juventude, a pensar que vai envelhecer um dia e precisará se preparar para essa fase da vida. A aposentadoria é uma forma da gente se proteger e se preparar financeiramente para a velhice, mas existem outras maneiras. Estamos educando nossas crianças e jovens?
O envelhecimento saudável tem sido promovido como uma escolha pessoal.
Diz-se por aí que teremos uma velhice saudável se a gente tiver feito boas escolhas. E tem muita gente que ganha em torno dessas tais “escolhas”. Pois se comer tais alimentos, dormir tantas horas de sono, fizer tanto tempo de atividade física, beber Xlt de água/dia, mais isso, aquilo ou acolá… você irá conseguir! Jogando toda a responsabilidade para a pessoa pelo seu envelhecimento com saúde. Porém, isso é lidar de forma fantasiosa com esse tema.
Num país tão desigual como o Brasil, poucos podem fazer escolhas reais. Como falar em envelhecimento ativo e saudável quando muitas escolhas dependem de gestão pública nas áreas da saúde (onde consultas levam meses), educação (boa parcela da população é analfabeta funcional), transporte público (grande parte leva horas do seu dia em ônibus e metrô), lazer e cultura (maioria não tem acesso) e acessibilidade (preciso falar das condições das calçadas nas cidades e das ruas nas periferias, em especial?).
Há muitas matérias dando receitas de como envelhecer bem para pessoas que, mesmo que tentem, provavelmente se sentirão decepcionadas consigo mesmas pela incapacidade de segui-las, sem se dar conta de que o problema não são elas.
O mercado da menopausa
Importante: acredito que são necessários estudos e pesquisas para encontrar respostas para mulheres que sofrem nesse período.
Dito isso, não sei se sou só eu, mas sinto que o tema “menopausa” se tornou um nicho de mercado, e pelo número de cursos, palestras, anúncios, oferta de medicações, métodos e tecnologias, uma fonte de renda lucrativa.
Sei que o assunto é importante, mobiliza e é dolorido, literalmente. Já passei por ele. Mas talvez porque seja meio desconfiada quando a esmola é grande demais, tenho visto muita oferta frente à grande demanda, mas pouco resultado do que é oferecido. E sabendo o quanto somos carentes de soluções para a menopausa, receio que a gente se torne mais uma forma de cifrão para a indústria, agora por conta da menopausa.
É preciso responsabilidade por parte das empresas e profissionais da Economia Prateada, do Cuidado e da Beleza, para pensar melhor seus posicionamentos quando interage com o público 50+ ou sobre questões que envolvem o envelhecimento, e do Estado, porque é chegada a hora de fazer sua parte e colocar em prática o que a legislação há anos já estabeleceu que é de direito da Pessoa Idosa e de quem envelhecerá nesse país.
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Foto da Capa: Gerada por IA