Joel Silveira era de Lagarto – cidade do interior sergipano onde, ele mesmo informava, Lampião jamais tivera coragem de entrar. Em seguida, completava: “Eis aí um homem sensato. Lagarto não é lugar para entrar, mas para sair”. E foi o que ele fez, mudando-se para o Rio, aos 26 anos, para se juntar a alguns dos mais brilhantes intelectuais, jornalistas, políticos e barões da imprensa de seu tempo e revolucionar o jornalismo feito no Brasil. Ao morrer em 2007, aos 88 anos, Joel estava com a saúde bem debilitada. Já não andava, só quando ajudado pelas duas acompanhantes, mas mantinha a mesma lucidez de quando chegou ao Rio em fevereiro de 1937, a bordo do vapor Itagiba (que cinco anos depois seria posto a pique por submarinos alemães). O primeiro emprego foi na Dom Casmurro, publicação criada por Brício de Abreu e Álvaro Moreyra que reunia entre seus colaboradores nomes como Carlos Lacerda, Oswald de Andrade, Cecília Meireles, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Moacyr Werneck de Castro. Dom Casmurro seria o aquecimento para o primeiro bote que a víbora daria poucos anos depois.
Em março de 1938, Joel começaria a colaborar com o semanário Diretrizes e, no começo dos anos 40, publicaria a reportagem que o colocaria no primeiro time da imprensa. “Grã-finos em São Paulo” era um irônico, mordaz e agressivo texto sobre o cotidiano da alta sociedade paulistana. Ele escrevia: “Era uma festa somente para milionários, e sobre todos aqueles sobrenomes repousava a força paulista de hoje. Por detrás dos sobrenomes, há um mundo incrível: centenas de fábricas, milhares de chaminés, milhares de motores, milhares de operários. Era um grupo terrível, avassalador. Com um gesto de mão, qualquer um deles poderia me aniquilar, me tanger longe, lá na rua. Mas os milionários apenas sorriam. Sorriam e bailavam com as mulheres, todas muito belas”.
A ridicularização da São Paulo festiva agradou a Getúlio Vargas e fez com que Joel fosse convidado por Assis Chateaubriand para fazer parte dos Diários Associados. Surpreendentemente, Joel não ficou feliz com a proposta e recusou o emprego. Mas o mesmo Getúlio Vargas que antes o admirava passou a detestá-lo depois de uma outra reportagem em que o repórter pedia que o país voltasse à democracia, destacando a frase “o governo deve sair do povo como a fumaça da fogueira”. O resultado é que Diretrizes acabou sendo fechada, não restando a Joel outra opção senão a de aceitar o convite de Chatô.
Foi o dono do Diários Associados o primeiro a chamar Joel de víbora e o novo emprego revelaria um Joel ainda mais venenoso. Sua primeira grande missão foi cobrir a II Guerra Mundial e o diálogo entre patrão e empregado é puro non-sense. Joel foi chamado por Chatô e recebeu a seguinte ordem: “Senhor Joel, você deve ir para a Itália. Vá cobrir esta guerra. Mas vá e não me morra!”. Anos depois, recordando essa história numa entrevista, o repórter que o questionava entrou no espírito e perguntou: “E o senhor não morreu, né Joel”. “Eu? eu não! Se eu morresse o homem me despedia!”.
Não morreu, mas deixou boa parte de sua juventude nos campos de guerra da Europa. Entrou na cobertura como o correspondente mais jovem. Saiu dez meses depois quase como um veterano. “Certo dia, o mais terrível deles, vi a morte de um sargento brasileiro, metralhado pelos alemães. Só conseguimos resgatar seu corpo quatro dias depois”, recordaria no livro O Inverno na Guerra. Voltaria ao Brasil mais maduro e mais cético e incorporaria esses sentimentos aos seus textos. O primeiro teste seria uma nova encomenda de Chatô. O barão da imprensa estava em guerra com o milionário paulista, que havia pedido de volta o prédio que os Associados ocupavam no Viaduto do Chá. A vingança veio na forma de texto com “A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista”, reportagem publicada em 1945 sobre o casamento do milionário João Lage com Filomena, filha do conde Francisco Matarazzo Jr. A cobertura do casamento da filha do conde vinha acompanhada do relato do enlace de um casal de operários, trabalhadores justamente das indústrias Matarazzo.
Além do poder da riqueza, Joel foi íntimo do poder político. A partir de Getúlio Vargas – com quem teve apenas um único contato ao vivo –, Joel conviveu com todos os presidentes. Não era de fazer amizades, mas conseguia manter um bom trânsito em várias esferas. E, a partir dos anos 50, trouxe para a análise política o seu faro de repórter investigativo.
O estilo inaugurado e aperfeiçoado por Joel era uma síntese das melhores vertentes de várias escolas de jornalismo. Aquilo, que a partir dos anos 60, convencionou-se chamar de Novo Jornalismo, já era exercitado pelo repórter duas décadas antes: texto direto e claro, recheado de observações sagazes e opiniões incisivas. Seu legado está presente no trabalho de dezenas de jornalistas, alguns claramente inspirados nele, como Fernando Morais e Geneton Moraes Neto.
Nos últimos anos, afastado do front jornalístico, acabou transformando-se em referência para as novas gerações. Seus textos foram reunidos em coletâneas (os ótimos livros A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista e A Feijoada que Derrubou o Governo) e Joel passou a ser entrevistado com maior frequência. As grandes reportagens deram lugar às pequenas crônicas. E aí revelava-se outro Joel, o genial criador de pequenas tiradas, aforismos, desaforos, vinganças pessoais, ironias e deboches.
Sua última batalha foi em 2001. Indignado com a candidatura de Zélia Gattai ao lugar de Jorge Amado na Academia Brasileira de Letras, Joel lançou sua anticandidatura e partiu para o ataque, chamando Zélia de escritora medíocre que havia crescido à custa do marido. Perdeu a disputa em uma das mais rápidas eleições da ABL (apenas 20 minutos de duração), mas ainda assim comemorou os quatro votos que teve contra os 32 de Zélia. Novamente foi irônico e definitivo.
– Só me candidatei para isso: para tirar quatro votos dela.