Tem história que leva décadas para ser contada. Esta esperou. E nunca pensei que chegaria com requintes da dobradinha psiquiatria e psicanálise. Ela aconteceu nos anos 90, pouco depois de eu chegar a Paris. Estava sozinho. Vivia sozinho. Terrivelmente sozinho. Morava em um estúdio de 16 metros quadrados, na rua Burk, em Montmartre. A proprietária, Mme Thiers, oferecia-me companhia, mas só uma vez por mês, quando eu precisava ir até a sua casa, na Rue Cambronne, para fazer o pagamento do aluguel. Eram outros tempos de relação proprietário-inquilino. Mme servia um almoço frugal, regado por muitas histórias de seus 89 anos, incluindo a participação do falecido marido na Guerra da Argélia. Depois, era um au revoir bem dado, e mais um mês de solidão para o inquilino. Não havia celular, redes sociais ou acesso a sites, a não ser para alguns abonados, o que estava longe de ser o meu caso.
Mas havia o Noctambules, o bar de Clichy, onde Pierre Carré, amigo de Edith Piaf, desfiava o repertório da amiga todas as noites. Foi ali que me tornei um boêmio, com direito à mesa cativa, um bebedor de Coca-Cola, quando ela ainda não existia em estado zero. Ganhava diariamente alguns quilinhos e, sobretudo, a companhia de outros solitários, espécie que não faltava nas noites parisienses. Sem orçamento para manter o hábito compulsivo e necessário, precisei recorrer ao escambo. A parte que me cabia ampliava o meu diagnóstico mental para além de um quadro depressivo decorrente da solidão. Introduzia-me no eixo 2 do então diagnóstico de transtornos emocionais, agregando ao estado depressivo uma personalidade psicopática que, felizmente, não vem se confirmando. Em troca da mesa e do consumo tão somente de bebidas não alcoólicas (no máximo uma demi-baguete com salame da campanha), eu mocozeava do hospital Avicenne, onde eu trabalhava no serviço de Psiquiatria, antidepressivos para o cantor e o gerente, com o acréscimo de alguma psicoterapia breve, no final de cada noite, o que daria uma outra história, não fosse o sigilo profissional.
A troca era vantajosa para mim. Por mais que os remédios esbatessem alguns de seus sintomas, “meus pacientes” transformavam ainda mais a minha dor, com aquela música e companhia tão rica de histórias de outros tempos, e de um espaço para contar e ouvir. Para eles, conforme o prometido no primeiro parágrafo, a psiquiatria. Para mim, a psicanálise. Havia mulheres que ofereciam migalhas de olhares, assuntos robustos e algum toque de passagem para o banheiro, o que hoje seria considerado assédio, e talvez já fosse. Gostavam de falar em chacras, astros injustos, assuntos felizmente nem um pouco científicos. De vez em quando, depois de uns dois gins tônica, alguma delas sondava a possibilidade de fazermos um filho; outra, mais subjetiva, fazia uma proposta quase inaudível de amor. Não fizemos nem um nem outro, mas nos tornávamos, todos nós, menos depressivos e mais confiantes, o que incluía Therese, aquela senhora grisalha que vivia com bandeide nos dois tornozelos, e nunca nos deixou decifrar o seu mistério. Ela sempre pedia ao gerente que abrisse uma janela que ele jamais abria, fazendo com que Thérese repetisse, noite após noite, uma frase que ainda me visita, décadas depois da última vez que ouvi diretamente de seus lábios carregados de batom:
– Ok, Mathieu, serei obrigada a ver através!
No ano seguinte, ganhei também para os dias uma companhia nada boêmia, juntei a pequena bagagem de alegrias amealhadas em Montmartre e desci para ancorar minhas tristezas, mais ao sul da cidade, no Quartier Latin.
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Foto da Capa: Guia Viajar Melhor