O Brutalista é um filme de 2024 dirigido pelo ator e cineasta Brady Corbet (que você pode ver, por exemplo, como o personagem-título no filme Simon Killer, no qual ele contracena com a também diretora e atriz Mati Diop). É estrelado por Adrien Brody (de O Pianista, além de múltiplas colaborações com Wes Anderson, só para dar um exemplo) e, embora eu não tenha visto o filme ainda pelos motivos óbvios – não estreou ainda por aqui – já faz algumas semanas que tenho para essa produção específica um apelido carinhoso: Oppenheimer com arquitetos – é um épico histórico passado no século XX e com mais de três horas de duração (aparentemente, ninguém mais sabe fazer filme na marca dos dois dígitos, abaixo dos 100 minutos).
A sinopse do filme que está sendo divulgada nos canais competentes é: “Fugindo da Europa pós-guerra, arquiteto húngaro visionário László Toth (Adrien Brody) chega à América para reconstruir sua vida, carreira e casamento com Erzsébet (Felicity Jones). Sozinho em um novo país estranho, ele se estabelece na Pensilvânia, onde um rico e proeminente industrial (Guy Pearce) reconhece seu talento“.
Aclamado em festivais (tendo inclusive abocanhado o Leão de Ouro em Veneza) e consagrado no último Globo de Ouro (levou os prêmios de Filme de Drama, Direção e Ator, para Brody), O Brutalista vinha se aproximando da corrida final do Oscar com considerável favoritismo – ainda mais depois que Emilia Pérez passou a ser apontado como aquilo que de fato é: um delírio neocolonial francês sobre México e narcotráfico sem nenhuma atriz ou ator mexicano nos papéis principais.
Como é inevitável que aconteça na corrida final do Oscar com um filme feito em um país no qual o cinema é realmente uma indústria, O Brutalista amealhou atenção por outros elementos além de suas qualidades enquanto filme (até o momento desconhecidas da maioria do público, uma vez que o lançamento global do filme nos cinemas ainda não ocorreu e suas exibições foram até agora em festivais e ou em períodos restritos para cumprir exigências de competição nas premiações do início deste ano). Louvava-se, entre outras coisas, como um filme de tal escala e ambição havia sido feito com um orçamento de US$ 9,6 milhões, o que não paga um único ator em filme da Marvel.
Um parêntese aqui: sempre que eu leio coisas como essa frase que eu mesmo acabei de escrever, sou obrigado a parar e acabo chegando à conclusão de que o cinema como indústria talvez esteja mesmo fadado ao fracasso ou a se transformar em algo que não será mais aquilo que conhecemos. Porque o cinema como arte talvez seja insustentável se naturalizarmos que um filme “barato” custa quase DEZ MILHÕES DE DÓLARES, quantia que 99% da população jamais viu na vida. Por isso, nunca foi superado e talvez nunca seja o eterno debate sobre se cinema é arte ou indústria. E é claro que são as duas coisas, mas quando o aspecto “indústria” encarece um filme além de qualquer possibilidade de sobrevivência, não tem para onde correr depois disso. O resto fica a cargo dos verdadeiros departamentos de efeitos especiais de qualquer estúdio: o escritório de contabilidade. Fim do parêntese.
Estética e comércio
Como acontece com qualquer produto em um sistema industrial, mesmo escolhas estéticas e artísticas de um filme assim acabam virando ferramenta de marketing. Para emular não apenas o espírito do período em elementos cênicos aparentemente superficiais, como figurino ou desenho de produção, Corbet também decidiu fazer seu filme à moda antiga, usando o formato VistaVision 35mm, desenvolvido nos anos 1950 e aposentado depois do fim dos anos 1960. Corbet tem sido, aliás, bastante enfático em lançar mão desse dado como uma estratégia de marketing a favor da obra, tendo declarado que seu filme é “algo que não se produz mais” nos dias de hoje – nada contra, todo mundo tem que vender seu filme. Mas sempre me pego desconfiado quando nostalgia e elogio ao passado são os argumentos para defender uma obra de arte. Fica-se perto demais do ideário de uma gente sinistra que emergiu do esgoto da história e da qual não nos livraremos tão cedo.
Aliás, ainda no quesito “ranços gratuitos contra um filme que eu ainda nem vi”, só o nome me dá uma certa urticária. Se alguém morou as últimas duas ou três décadas em Porto Alegre e não está cansado ou até mesmo traumatizado com o Brutalismo arquitetônico é porque ou nunca ouviu falar do tema ou é dono de alguma das construtoras que transformaram uma variação pouco imaginativa desse estilo no visual hegemônico dos novos prédios na cidade.
Bom, esqueçam minhas ranhetices de velho e voltemos ao texto. Como eu dizia, O Brutalista, pela ambição, pelas qualidades técnicas, pelas credenciais artísticas de seu diretor, pela qualidade de seu elenco principal, até mesmo pelo tema e pela ambientação muito caras ao Oscar em premiações anteriores, vinha pintando como um favorito natural ao prêmio em várias categorias. Mas aí aconteceu uma coisa…
David Jancsó, montador do filme, deu com a língua nos dentes (seguindo no tema da minha coluna da semana passada, é possível que daqui a uns anos estejamos usando “cuspiu os feijões) em uma entrevista concedida ao RedSharkNews (leia aqui). Segundo ele, em um relato que provavelmente não seria aprovado se passasse antes pelo diretor e pela produção do filme, programas de Inteligência Artificial foram usados em dois elementos específicos do filme. Em um deles, uma IA generativa visual ajudou a compor uma cena no fim do filme, criando imagens de edifícios prontos a partir de projetos do arquiteto fictício que protagoniza o filme.
Voz e sotaque
Na segunda instância do uso de IA, as vozes dos atores Felicity Jones e Adrien Brody, que interpretam o casal principal, húngaros na narrativa, foram retrabalhadas com uma ferramenta chamada Respeecher, um programa que permite alterações de timbres de voz, modulação e até mesmo a criação de arquivos de áudio com um texto inédito na voz alimentada para o banco de dados da plataforma. Jancsó, húngaro ele próprio, nascido em Budapeste, alega que as alterações não substituíram o trabalho duro dos atores em aprender os diálogos no idioma e treinar o sotaque e a pronúncia com instrutores contratados. Foram apenas recursos para ajustar determinadas vogais e sons nos diálogos em húngaro, quase inalcançáveis para os atores de língua inglesa, É aí que vem se desenhando uma das grandes polêmicas em torno do filme, muitas vezes abrindo frentes de discussão bastante ricas e que independem de se ter visto o filme ou não.
A revelação foi feita quando o período de votação para escolha dos indicados já havia se encerrado, então não afetará uma provável enxurrada de indicações para O Brutalista. Mas pode custar caro ao filme na segunda rodada de votações, para escolha dos vencedores. Para começo de conversa, o uso de Inteligência Artificial na produção cinematográfica esteve no centro de uma acirrada controvérsia recente envolvendo quem faz o cinema e quem paga as contas e detém o poder no sistema americano de estúdios, resultando, inclusive, em duas longas greves, a de roteiristas de cinema, de março a setembro de 2023, e a dos atores e atrizes, de julho a novembro do mesmo ano. Além de negociar questões financeiras relativas a reexibições ou negociações com plataformas que não existiam antes dos anos 2010, como os streamings, um dos elementos-chave da queda de braço entre atores e estúdios foi a imposição de restrições ao uso de Inteligência Artificial tanto para a redação quanto para a composição visual ou replicação ad infinitum da imagem de atores sem remuneração.
Logo, está aí um dos motivos pelos quais O Brutalista subitamente foi de franco favorito para possível prejudicado na corrida pelos prêmios. Mas há, na discussão geral do uso de IA pelo filme, elementos para uma reflexão que não vi ser feita amplamente ainda.
Primeiro, existe a discussão sobre o uso da IA generativa para criar imagens usadas em cenas do filme. Essa é uma discussão que se enquadra no que, para mim, é o aspecto crucial dos problemas com a IA, a questão trabalhista. Os atuais serviços de estúdios de computação gráfica e efeitos especiais já representam, a seu modo, um modelo de economia de recursos possibilitado pela tecnologia para reduzir equipes de filmagem. Departamentos inteiros dedicados à criação de efeitos práticos foram substituídos por um estúdio terceirizado com equipes de jovens técnicos mal remunerados mexendo em computadores de 6 a 18 horas por dia.
Mesmo quando a estrutura desse sistema começou a fazer água porque o trabalho era tão mal pago e as demandas tão absurdas que isso se refletiu no resultado final, como na profusão recente de produções milionárias com efeitos piores do que cut-scene do PS-2, a insatisfação de parte do público não levou a uma lógica de produção mais humana. Mas o salto tecnológico recente das IAs forneceu a possibilidade de contornar esse problema, deixando de lado o elemento humano e cortando custos. Algo que já era discutido em um filme como O Congresso Futurista, filme presciente de Ari Aster (sobre o qual já falei aqui).
Faz de conta
Há, no caso em tela, outro elemento a ser discutido: o quanto o uso da ferramenta digital para aprimorar o húngaro de Adrien Brody pode fazê-lo perder o Oscar de Melhor Ator. E confesso que, nesse caso específico, minhas sensações a respeito são mais ambíguas. Certo, boa parte das críticas se assenta em um argumento bastante razoável. Parte da construção de um personagem capaz de falar em tela passa pelo trabalho de voz de um ator, e se essa voz foi de algum modo manipulada, isso afetaria o resultado do trabalho a ponto de provocar a desclassificação de uma premiação para eleger os melhores de um ano específico
Um crítico brasileiro que acompanha os bastidores de premiações estrangeiras, Waldemar Dalenogare, mencionou em um vídeo sobre o caso (veja aqui) que achava o uso problemático porque era uma forma de enganar o espectador, afinal, pensa-se que o ator está mesmo falando naquele idioma e na verdade houve manipulação. Seria melhor, de acordo com Dale, que o ator dissesse suas falas e a repercussão sobre se está preciso ou não ficaria restrita aos falantes nativos do húngaro, mas aí é do jogo.
Não sei se concordo pelo simples motivo de, nesse ponto específico, tudo no cinema, principalmente esse narrativo, ao modelo hollywoodiano, ser um jogo de espelhos para enganar o espectador praticamente desde a origem. O próprio Dale comenta em seu vídeo que o mesmo artifício (e o mesmo programa) foi usado por Emília Pérez para ajustar, à moda de um autotune, as vozes das atrizes que interpretam as canções do musical (se a voz da Selena Gomez é aquela depois de passar pela correção, imagino o que seria a matriz da gravação original, mas divago). Só que, como nesse caso, está se corrigindo notas não alcançadas pelas atrizes solicitadas a cantar, o uso não provocaria tanta polêmica.
Sem escolher lado na questão, mas o que tenho a perguntar é: por quê? A mesma ferramenta usada para dar a impressão de que Brody fala húngaro como um nativo, o que ele não fala, também é usada para fazer parecer que Selena Gomez sabe cantar. Ou as duas coisas se equivalem, ou a discussão está viciada. Também a ideia de que a manipulação seria uma trapaça me parece exagerada se analisada até seus desdobramentos extremos. Não haveria dublês, por exemplo, uma categoria que, aliás, busca seu reconhecimento nas premiações hoje em dia, se só lutadores treinados estrelassem filmes de ação. No Oriente, principalmente no cinema clássico de Hong Kong, era muitas vezes o caso. Nos filmes americanos, nem tanto. Há toda uma outra discussão a se fazer sobre o quanto o ator realmente sabe lutar (ou dançar, por exemplo, já que muitas lutas são coreografadas como um bailado) oferece mais opções de disposição de cena, enquadramento, fotografia, permitindo assim imagens mais impactantes e abordagens mais originais a uma cena que teria de ser resolvida, de outra forma, com 20 cortes por segundo, como nos filmes do Liam Neeson. Mas, em algum ponto, você vai usar alguma trucagem para que um ator pareça fazer algo que ele não sabe.
Brody famosamente aprendeu o básico de piano para seu papel em O Pianista, assim como Natalie Portman teve aulas de balé para Cisne Negro e Margot Robbie de patinação para Eu, Tonya. Me parece que essas informações circulam, muitas vezes, como uma peça de marketing para o filme mais do que qualquer outra coisa. Nos três casos, e em outros mais, os atores estão interpretando não apenas pessoas que tocam piano, dançam ou patinam, mas sim pessoas reais ou imaginárias que fazem isso em um nível de excelência inacessível a qualquer um com apenas seis meses ou mesmo um ano de aulas, mesmo que com os melhores professores do mundo. Logo, algum fingimento e truque sempre haverá, a menos que você contrate, como algumas produções dos anos 1990 contrataram, com sucesso variado, o Mikhail Baryshnikov para estrelar a produção.
Autenticidade como propaganda
Uma das mais irritantes peças de autopromoção de Christopher Nolan é o papo manjado espalhado por ele mesmo e por seus superfãs chatos (estou ainda à procura de alguma OUTRA categoria de fã do Nolan. Quando achar, aviso) é que Nolan é um guerreiro do cinema “prático”, sem uso de trucagens digitais. Outros autores também são adeptos desse discurso de autenticidade como estética, e sempre me parece mais papo de marqueteiro do que qualquer outra coisa. O discurso do Brady Corbet de O Brutalista é um desses. Outro que costuma também falar sobre a autenticidade material obsessiva de sua construção cênica é Robert Eggers, autor do Nosferatu novo, esse que está em cartaz ainda. E de novo, me parece exagero, dado que, para mim, o coração do sucesso obtido por ele nesse filme não está na cambraia original das camisolas usadas por Lilly Rose-Depp ou no desenho fidedigno de botinas do século XIII que Bill Skarsgard usa para personificar o maléfico Conde Orlok, mas na forma como a encenação e o roteiro são bem-sucedidos em plasmar na tela a mentalidade do período que encena, em vez de derivar para soluções fáceis do mundo de hoje.
Assim, o que penso é que se uma tecnologia nova no cinema está tirando empregos, temos um problema. Se ela está amplificando um faz de conta, já é tema para outra discussão. Tom Cruise, com suas tentativas veladas de suicídio espetacular a cada novo stunt arriscado para a série Missão Impossível, vai pelo mesmo caminho, dizendo em entrevistas que há coisas que você não pode reproduzir em simulação.
Sim. Há. Por esse pensamento, talvez os filmes norte-americanos devessem matar menos gente a cada narrativa, dado que ninguém ali está morrendo de verdade. Isso talvez amplifique o valor e a diversidade dos filmes que vemos todo ano.
Todos os textos de Carlos André Moreira estão AQUI.
Foto da Capa: Adrien Brody/ Divulgação