Em tempos em que o laço social se encontra tão fragilizado, tem sido importante que os psicanalistas sustentem posições que, até pouco tempo, eram tema de debate e crítica. Hoje em dia, é bastante temerário colocar em questão alguns discursos que antes nos permitíamos questionar.
Um destes discursos é o da ciência. Sabemos bem que não existe ciência que não seja a instrumentalização de uma política – vejamos, por exemplo, a indústria farmacêutica e seus efeitos na modulação de humor dos indivíduos dentro da lógica neoliberal. Sustentadas em uma premissa de “produtividade a qualquer custo”, não são poucas as estratégias de cura farmacológica que visam não necessariamente mitigar o sofrimento psíquico, mas sim tornar o paciente mais bem adaptado às normas do capitalismo tardio.
Entretanto, é esta mesma ciência que nos forneceu as tão esperadas vacinas contra a COVID-19 e que vem se empenhando tão ferrenhamente na elaboração de formas de intervenções cada vez mais eficazes contra esta doença que nos tomou a todos de surpresa. Estranhamente, estamos vivendo em uma época de descrédito da verdade científica, especialmente através das fake news. E, mais ainda: a propagação destes discursos ideológicos falsos ocorre por meio das redes sociais, estes espaços virtuais em que a palavra se encontra, volta e meia, em apuros na sua implicação com a verdade.
Tendo em vista o meu ofício de operário da palavra, convido o leitor a pensar estes quatro discursos – da ciência, das fake news, da psicanálise e das redes sociais – a partir do “pacto narrativo” que eles propõem.
Na gramática da ciência, a verdade é consonante à realidade. Supõe-se uma realidade que seja objetiva e externa ao observador. O mundo aqui é tomado como um enigma resolúvel, uma equação cujas variáveis vão se elucidando à medida que o saber “avança”. Avançar significa traduzir a realidade em constantes e, a partir destas, estabelecer leis. Em última instância, temos aqui a fantasia de um mundo maquínico cujos movimentos pudessem ser, idealmente, todos previsíveis e manipuláveis. A matemática surge aqui como uma linguagem de nível zero, um idioma de base que, supostamente, permitiria a abstração e a generalização das ocorrências singulares.
No discurso científico, o singular é uma mancha que deve ser apagada: a subjetividade do experimentador é um obstáculo à elaboração de afirmações universais. Logo, esta subjetividade precisa ser minimizada para que uma pesquisa científica seja referendada pelos pares. Eis então o pacto narrativo científico: supomos um mundo coerente e objetivo e trabalhamos com a ideia de que o que falamos sobre este mundo seja uma tradução perfeita da realidade. A linguagem aqui é informativa, não criativa. A realidade é substituída pelas formulações matemáticas – curiosamente, apesar de o discurso científico ser aquele que talvez mais apegue-se à realidade dita “concreta”, ainda assim é o que mais prescinde dela na construção de um saber sobre o mundo.
Por mais que nós, psicanalistas, tenhamos por tanto tempo criticado esta forma de ver o mundo – justamente por elidir o sujeito do seu ato enunciativo -, é importante que não nos deixemos cair na ilusão de que o mundo fala “psicanalitiquês”. Em outros termos, colocarmos em questão o discurso da ciência, nos dias de hoje, corre o risco de equivaler a assumir uma postura negacionista.
Nos consultórios, mantemos a nossa ética de escuta do sujeito e de tudo aquilo que escapa à generalização da lógica científica. No âmbito público, por outro lado, me parece necessário reforçarmos o pacto narrativo de que a verdade científica é condizente com a realidade e que, portanto, há que se dar voz aos cientistas e pesquisadores. Foram eles, afinal, que permitiram que a vacinação em massa avançasse e que nós pudéssemos novamente sair para as ruas e encontrar os nossos amigos e conhecidos. Hoje em dia, podemos dizer que a ciência é o nosso antídoto contra as informações falsas.
As fake news e o pacto de auto-engano
Já o discurso das fake news parte de um pacto narrativo bastante específico: tanto aquele que o enuncia quanto aquele que recebe a informação sabem que a enunciação é falsa, mas mesmo assim vivem como se ela fosse verdadeira. A referência aqui não é mais a realidade supostamente objetiva, como na lógica científica, mas sim a ideologia auto-referenciada a serviço de uma agenda política específica.
Neste sentido, a fake news se divorcia por completo da realidade, levando ao extremo a suposição de que “tudo é narrativa”. Os fatos por si só não detêm consistência alguma.
As enunciações, neste contexto, são validações dos afetos. Assim, não é de se estranhar que as fake news propaguem justamente o sentimento de ódio: é mais aceitável socialmente odiar acompanhado, entender o ódio pessoal como uma forma de pertença a um grupo dos “que vêem as coisas como elas são de verdade”. Há um gozo complementar aqui, o de supor-se mensageiro privilegiado de uma verdade que só está disponível para alguns. É a premissa da seita. Em uma organização ao estilo de seitas, nós encontramos a verdade como um certo bem pertencente àqueles privilegiados que se sacrificam em prol de um líder ou de um ideal superior.
No Brasil contemporâneo, as fake news estão a serviço da manutenção da potência de algumas figuras elevadas à condição mítica, como o atual presidente e o seu falecido guru, por exemplo. Curiosamente – mais um paradoxo -, quanto mais a potência de alguém precisa ser sustentada, mais se denuncia a sua fragilidade. Não à toa, um dos gestos de filiação a esta seita à brasileira é a mão em formato de arma de fogo: a pantomima de uma performance de poder que nada mais faz do que evidenciar a dúvida íntima a respeito de sua própria potência no mundo.
O pacto narrativo, nesta perspectiva, é o semelhante ao religioso. Baseada na crença, a enunciação não é uma tradução da realidade em leis, como na lógica científica: antes sim, é como um mantra repetido à exaustão. Cada seguidor da figura totêmica se mantém filiado ao grupo dos “iluminados” pelo compartilhamento de uma verdade oculta que só é revelada para os poucos escolhidos. Desta forma, os veículos tradicionais de comunicação são rebaixados ao lugar de falsários da verdade que visariam destituir o totem de seu poder magnífico.
Hipérbole do auto-engano, o pacto narrativo das fake news ignora completamente a verdade como adequação (discurso = realidade) para se basear tão somente na verossimilhança: “se condiz com o meu ódio, então é verdade”. O referente, aqui, é o afeto daquele que enuncia a sentença: se condiz com o que eu penso, então é verdade. Aqui, o individualismo encontra o seu nem tão distante aparentado discurso religioso em um casamento que, ao fim e ao cabo, é uma forma de incesto político: afinal, a própria lógica do capital supõe um deus ao qual adorar: o Mercado.
As fake news são uma gramática que constrói um mundo paralelo e que rebaixa toda episteme à doxa: em outros termos, tudo se torna uma questão de opinião individual, independente dos consensos comunitários e dos referenciais da realidade objetiva ou factual.
A verdade como construção na psicanálise
Em uma terceira aproximação ao tema da verdade, temos também o pacto narrativo proposto pela psicanálise. Se a lógica científica não pode prescindir da realidade objetiva e se, por outro lado, a gramática das fake news ignora por completo o mundo em sua concretude, a psicanálise dá uma outra volta nesta questão.
Ao longo da obra de Freud, vemos uma gradativa ficcionalização da realidade: em um primeiro momento, o discurso das pacientes histéricas era escutado como verdade material, ou seja, como se fossem relatos fidedignos de algo acontecido. Assim, os tantos relatos de abusos sexuais na infância eram interpretados como testemunhos fiéis de uma verdade “concretamente acontecida”.
Por uma certa auto-consciência culpada (como poderiam os bons homens vitorianos ser tão perversos?), Freud preserva os seus contemporâneos ao afirmar que muitas daquelas falas eram fantasias, versões singulares de fatos objetivos. Neste segundo momento, a fantasia é uma leitura particular do mundo. Não que não houvessem familiares, vizinhos e conhecidos abusadores, mas Freud atenta para o fato de que, na mente de uma criança, algumas vezes um gesto fica registrado e não pode ser entendido naquele momento, sendo só posteriormente revisitado pela memória do adulto. O ponto em questão, aqui, é que o adulto “volta” para aquela lembrança imerso em uma linguagem sexualizada, o que coloca em questão muitos dos encontros primeiros entre a criança e um adulto. Esta é, digamos assim, uma segunda proposição da relação entre verdade e discurso em Freud.
Por fim, chegamos ao Freud tardio: a narrativa não é mais nem um informativo da realidade e nem uma falsificação desta, mas uma construção necessária para dar sentido ao mundo. A realidade não tem mais valor em sua objetividade, ela é um enigma que nunca será decifrado. Há uma dissociação fundamental entre palavra e coisa, entre discurso e referência.
Ainda que fosse um cientista à moda clássica, Freud percebeu que a realidade psíquica é tão efetiva quanto aquela material. O mal-estar de uma época (socialmente compartilhado) é singularizado em uma narrativa de sofrimento pessoal. A consistência de verdade está localizada justamente nesta singularização da mal-estar social pelo sofrimento particular.
O pacto narrativo entre analista e paciente é o da suspensão da realidade objetiva. Não no sentido de que a fantasia “é o que vale” ou, como muito se fala, de que “cada um tem a sua verdade”. O ponto central é a suposição de que não há uma verdade objetiva, de que é a interpretação do mundo que constrói o mundo.
Ou seja: a referência do que é verdadeiro ganha consistência no tecido social, no laço comunitário. Vejamos, por exemplo, como prova, o fato de que as práticas xamânicas ou os rituais terapêuticos de culturas não-ocidentais têm eficácia terapêutica naqueles em que são aplicados. A palavra opera em sua potência de criadora de realidade. Assim, cada época produz um discurso razoavelmente estável sobre o enigma do mundo. Quando este discurso organiza os lugares de reconhecimento, ele é entendido como “a realidade” ou como “a verdade”.
As redes sociais e a curadoria da verdade
Muitas vezes, este discurso normatizante pode ser apreendido através das redes sociais. Afinal, nas redes, o pacto narrativo parece ser expressado pela máxima “quem não te conhece que te compre”. Assim como na gramática das fake news, as postagens nas redes partem de um acordo tácito de que o receptor da mensagem também não acredita ingenuamente naquilo que é transmitido. Neste sentido, as redes sociais só podem ganhar relevância e estatuto do pseudo-verdade em uma era em que indivíduo é entendido como consumidor. Tornou-se corriqueiro falar que nós “consumimos” a cultura, “consumimos” o conteúdo da internet, “consumimos” as notícias.
Ora, se a lógica é a de consumo, então as nossas manifestações nas redes fazem de nós um produto a ser “comprado”. Nós “compramos” a narrativa dos nossos amigos e conhecidos como se elas fossem verdadeiras. Ocorre aqui um encontro entre a fake news e a ficção: nós sabemos bem que aquela foto relaxando na piscina é um recorte mínimo da vida do outro, mas mesmo assim nós suspendemos a descrença e imaginamos que nosso amigo tem realmente uma vida boa e tranquila. Vemos o close, e não o “corre”, como se costuma dizer. Ou seja: nós tomamos o ideal como o verdadeiro.
Os posts nas redes, especialmente no Instagram, vêm a partir do ideal de eu, de uma fina leitura do que a cultura contemporânea demanda: oferecemos uma versão de nós mesmos curada pelos ideais de beleza, produtividade e felicidade. Se pudermos ser um pouco ousados, podemos dizer que vivemos em uma época de curadoria da imagem pessoal.
Mas nem tudo são críticas. Por outro lado, também entendo que as postagens na rede explicitam o aspecto ficcional da construção de nós mesmos. Afinal, nós também somos aquilo que apresentamos para o outro e, especialmente, aquilo que de nós é reconhecido pelo outro. A “verdade” de nós mesmos está não em uma essência íntima, mas na imagem que vemos refletida e referendada pelos outros. Este descentramento de si mesmo é constituinte da subjetividade – o olhar do outro antecipa uma imagem com a qual nos identificamos.
Assim, a máxima neoliberal de “seja você mesmo” é também uma modalidade de auto-engano, na medida em que nós somos mesmo o que em nós é reconhecido pelos outros.
Em última instância, nós somos a fake news de nós mesmos.