Quando o prefeito Sebastião Melo disse, há uns meses atrás, que não queria que o assunto da revisão do Plano Diretor ficasse na questão do aumento da verticalidade dos edifícios, desconfiei: ele quer liberar os limites de altura. Dito e feito. Aliás, não sei com qual mágica ele já conseguiu que construtoras aprovassem projetos que extrapolam, e muito!, os limites do Plano Diretor antes mesmo de qualquer revisão. Verticalidade parece ser uma obsessão do prefeito de Porto Alegre.
A justificativa dele é que precisamos impedir o espraiamento horizontal da cidade. É preciso densificá-la. Palavra mágica que vem sendo usada para demonstrar sapiência em assuntos urbanísticos. Já vamos falar disso, mas antes queria lembrar que o presidente da Câmara de Vereadores Hamilton Sossmeier, aliado político do prefeito, fez um discurso contrário à densificação para defender a construção do condomínio Fazenda do Arado na zona rural da cidade, dizendo algo assim como “depois da pandemia, as pessoas querem morar em casas…”. Ou seja, vivemos numa cidade esquizofrênica. Discursos diametralmente opostos de aliados políticos são feitos em favor de um único interesse: negócios imobiliários. Podiam combinar melhor sua retórica, mas não precisam, as redes sociais não fazem confronto de discursos, só os repercutem.
A imprensa tradicional muitas vezes funciona como porta voz dos mesmos interesses que veem a cidade como oportunidade de negócios imobiliários, escrevem matérias como se os beneficiários fôssemos todos nós cidadãos e não apenas os empresários da construção. Vai gerar empregos é o mantra, riqueza para todos! Leio isso desde que aprendi a ler, e a concentração de renda só aumenta…
Um exemplo é a matéria de 06/11/2023 em Zero Hora “Futuro do Centro Histórico em debate” que tem o sugestivo subtítulo “Conjunto de propostas somam pelo menos R$424 milhões…” Coisa boa, né? Tomara que ninguém atrapalhe! (contém ironia). O texto não diz muito mais do que o bom seria liberar alturas no centro histórico, mas há controvérsia entre especialistas. Uma forma de dizer que sempre têm os do contra, os que impedem a ordem natural do progresso, da realização da riqueza. Já a foto do centro da cidade que ilustra a matéria — parabéns Mateus Bruxel! — mostra um amontoado de edifícios horrorosos que faz a gente pensar na loucura que seria incluir um prédio três vezes maior que a média ali, naquela paisagem.
Fica a pergunta que não foi feita: antes de pensar em construir qualquer coisa no Centro Histórico, não seria o caso de qualificar aquele ambiente, de verificar se os imóveis da foto estão sendo plenamente utilizados, se há ociosidade, salas e apartamentos vazios? Estão tratando o Centro Histórico como uma casa velha, mal construída, em parte desabitada, com salas e quartos sem uso, em que o proprietário em vez de pensar em uma reforma geral manda construir quartos novos… faz sentido? É o que o prefeito quer fazer.
Sobre a densidade, a própria reportagem de Zero Hora nos conta que o Bom Fim, com seus prédios de pouca altura, tem densidade maior do que a do Centro Histórico. E certamente esse bairro se sai muito melhor na foto do que o centro. Só essa evidência de que a densidade não depende da altura das edificações já deveria ser suficiente para fazer nosso prefeito parar para pensar. A forma de ocupar o terreno e o tamanho de cada apartamento é fator muito mais importante do que sua altura. No caso de casas, além do tamanho, pesa também a área livre entre elas. O bairro Bom Jesus, por exemplo, tem densidade equivalente a do Centro Histórico e praticamente não tem edifícios.
Porém, o fato central, que precisamos chamar atenção, é que Porto Alegre tem uma dificuldade enorme para aumentar sua densidade. Desculpem a historinha didática, mas vamos imaginar um quarteirão de 100m x 100m que inicialmente tem uma única casa. Aos poucos vão sendo construídas outras e a densidade vai aumentando, evidentemente. Chega uma hora que a quadra está toda ocupada e então, para aumentar a densidade, resta a opção de trocar, demolir, uma casa por um edifício para que ela continue crescendo. Isso funciona porque há novos interessados aguardando a vez de morar nesse quarteirão.
Mas imaginemos um outro caso. O quarteirão está completo como o anterior e não há mais ninguém querendo ir morar lá. Mas como eu sou obcecado em aumentar a densidade, eu convenço os moradores a demolir suas casas e substituí-las por alguns edifícios na metade da quadra. Em troca, com o espaço que sobrou, proponho fazer um jardim e plantar uma horta. Beleza, agora metade da quadra está mais densa em relação à outra. Consegui! Isso seria muito bom para desafogar e qualificar as grandes cidades brasileiras, mas não é o que acontece.
O caso de Porto Alegre, atualmente, com população decrescente, como mostra o Censo, poderia ser o do segundo exemplo se houvesse uma visão macro da cidade. Seria preciso, através de incentivos, planejar o deslocamento de moradores de um lugar para outro para que novos equipamentos urbanos melhorassem a qualidade de vida do seu bairro. Agora, eu pergunto, quem na prefeitura está planejando adensar um quarteirão para aliviar outro com a proposta de novos usos nos espaços vazios que se poderia obter? Ou quem se ocupa de pensar o destino dos imóveis vazios que já se vê por toda cidade?
É visível que a matemática demonstrada acima não é aplicada no planejamento da cidade. Pelo contrário, a expansão urbana não para de acontecer e só faz a densidade média da zona urbanizada baixar. É como querer apagar o fogo com gasolina. Encarar a realidade, sabemos, não é agradável quando contraria nossos interesses. Melhor pensar como se ainda vivêssemos no período da explosão demográfica, típica das décadas de 1950 a 1970.
A política descompromissada da realidade é que explica a existência de mais de 101 mil imóveis vazios em Porto Alegre. Não há razoabilidade possível na atividade de construir sem parar para uma população estável ou na de desejar aumentar a densidade de um bairro sem considerar o deslocamento da população. Alguém sabe me dizer de onde sairão os moradores que vão ocupar os gigantescos edifícios do Quarto Distrito, do Cais Mauá ou do Centro Histórico? Ou o que pretendem fazer com os bairros esvaziados?
Não há causa e consequência nesse modo de planejar. A densidade geral da cidade não vai mudar mais (ou pior, vai diminuir), a dos bairros sim podem mudar, uns em favor dos outros. Isso é ruim? Depende do que fizermos com esse entendimento. Fechar os olhos é a pior política.
Verticalizar é a grande falácia dos que usam o planejamento para fins diferentes do que seus discursos professam, sejam eles quais forem. Quando vamos encarar a realidade de que construir imóveis para esvaziar outros não faz sentido do ponto de vista macroeconômico, social e, mais importante, ambiental? Em tempos de emergência do aquecimento global seguimos com a cabeça dos anos 1970, como bem reconheceu uma grande construtora ao atualizar um verso popular daqueles anos em seu tapume publicitário: “deu pra ti” Porto Alegre, tchau.
Foto da Capa: Rafael Neddermeyer/ Fotos Públicas