Quase que por acaso, tenho a tradição de me dar de presente de aniversário, a cada cinco anos, uma boa caneta.
Gosto das canetas, dos livros, dos blocos de anotações, dos cadernos dos mais variados tamanhos, dos post-its, das tintas para caneta tinteiro, dos marcadores de páginas… enfim, se para Borges a biblioteca era uma espécie da Paraíso, para mim o mesmo vale para as papelarias.
Como este ano decidi levar a vida com mais profundidade, também tem sido parte dos meus dias a escrita à mão. Para algumas coisas, como esta coluna, o teclado ainda é um parceiro mais adequado – mas tudo o que vem a se tornar o texto final que você, leitor, agora lê, já foram notas esparsas jogadas aqui e acolá sobre minha mesa de trabalho.
Muitas ideias naufragam nesta travessia entre a mesa e a tela. Volta e meia mergulho nelas em busca de alguma sobrevivente que ainda tenta encontrar a margem.
Ou as margens do texto, no caso.
Enfim, a primeira vez que comprei uma caneta de presente pra mim foi nos meus trinta e cinco anos. Não era a minha intenção, foi um ato culposo. Mas, como no crime perfeito, eu estava na hora certa e no lugar certo: em férias, caminhando a esmo por ruas de uma cidade pouco conhecida, me deparei com uma linda caneta na vitrine de uma papelaria. Não deu outra: não pensei duas vezes e saí de lá com um belo artefato de escrita de uma marca para a qual não vou fazer propaganda aqui (a não ser que seja bem pago por isso).
Era uma edição comemorativa dos cinquenta anos da chegada do homem na Lua (que realmente aconteceu, diga-se de passagem), o que fazia muito sentido para mim naquele momento: à época, eu escutava muito R.E.M., banda que me acompanha desde a adolescência. Ainda hoje Man on the moon é uma das minhas músicas favoritas.
Quando eu era pequeno, eu ficava fascinado que o meu pai tivesse visto aquele pequeno passo para um homem, mas um grande passo para a humanidade na televisão preto-e-branco. Que coisa maravilhosa deve ter sido testemunhar a conquista do éter, ter visto em tempo quase real o mais alienígena dos homens!
Meu pai tinha vinte anos quando mandamos o primeiro homem à Lua. Um belo presente para uma idade “cheia”.
Às vésperas de completar os meus quarenta anos (faço aniversário nesta quinta-feira, dia 12), estive novamente às voltas com a compra da dita caneta-presente. Só que dessa vez a escolha não foi tão simples como havia sido há cinco anos.
Passei por diversas vitrines, abri uma dezena de abas no navegador, vi um sem-número de avaliações no YouTube, mas eu simplesmente não conseguia me decidir. O leitor talvez se identifique com esta dúvida persecutória, mas fato é que eu nunca fui assim: sempre me vi como uma dessas pessoas que escolhem as coisas com facilidade, talvez até com descaso excessivo.
Muito disso devo também ao meu pai. Quando eu tinha uns seis ou sete anos, fui ao supermercado com minha família para fazer o famoso “rancho do mês”. Como aquilo era muito entediante, eles me deixavam no corredor dos brinquedos, com a promessa de que ao final eu poderia escolher um que não fosse muito caro.
Imagine o leitor a angústia de uma criança frente ao que parecia uma infinidade de opções.
Lembro de ter ficado aquela hora e pouco perambulando pelo corredor, calculando os prós e contras de tal ou tal brinquedo. Por fim, reduzi as minhas opções a duas variações de bonecos – hoje em dia se diz action figure, caso um leitor mais jovem esteja aí me lendo – dos Comandos em Ação. Um tinha um paraquedas vermelho reluzente, que me saltava aos olhos. O outro, entretanto, vinha com uma camuflagem e apetrechos para missões sob baixa visibilidade.
Quando finalmente voltaram para me resgatar, falei que estava em dúvida. Meu pai, com a sabedoria pragmática que sempre lhe foi característica, fez talvez a melhor intervenção possível: “Ué, se tu gostou dos dois, então tanto faz qual tu levar”.
Simples.
O pior é que funcionou.
Coloquei no carrinho de supermercado o soldado camuflado, e só hoje, escrevendo esta coluna, me lembrei do paraquedista, perdido na selva da minha memória de infância. Ou em alguma nota náufraga ao lado do computador.
Só que com a caneta dos meus quarenta anos essa tática não funcionou.
Demorei pra entender que a questão não estava nas características das canetas (tinteiro ou rollerball? Preta clássica ou outra cor?), mas no que ela significava.
A caneta que eu não escolheria representava a elaboração do luto que acompanha todas as datas importantes de nossas vidas – mesmo que sejam eventos felizes.
Toda vez que a vida se impõe na sua inexorável irreversibilidade, nos vemos tendo que lidar com tudo que fomos e com todos os caminhos que não seguimos.
Fazer aniversário não é só entrar em uma nova idade, mas é também despedir-se de nós mesmos, é acenar para a vida que nos trouxe até aqui. Em datas fechadas como os quarenta anos, essa sensação é redobrada. No meu caso, é como se o mundo se virasse para mim e me perguntasse: “E aí, não teria sido melhor ter escolhido o paraquedista?”
Nestes momentos temos a certeza de que nem toda escolha “tanto faz”.
No fim, me agradou a caneta que escolhi. Ironicamente, acabei comprando a primeira que eu tinha visto e gostado.
Mas precisei ir à Lua e voltar até me sentir confortável com toda a vida que escolhi não viver.