João Moreira Salles é um documentarista de primeira linha e também dono de um baita texto, exemplar na combinação de estofo, elegância e clareza que marcam a revista que criou. Foi na Piauí que ele escreveu o belo obituário do matemático alemão Alexander Grothendieck, sobre o qual eu nada sabia até terminar a leitura do exemplar de dezembro de 2014. Salles confessava no texto que também ignorava a existência de Grothendieck até saber de sua importância e fascinante biografia ao entrevistar o jovem prodígio brasileiro da matemática Artur Avila, de quem fez um alentado perfil na revista, publicado em janeiro de 2010.
Grothendieck morreu aos 86 anos. Cumpriu uma trajetória brilhante em seu campo de estudo e decidiu transformar sua vida em um ponto de interrogação, tornando-se personagem de uma ficção construída por impressões e lembranças alheias, boatos e lendas urbanas. Revolucionou as áreas da geometria e da álgebra. Quando saboreava o auge do reconhecimento acadêmico, no final dos anos 1960, embarcou numa progressiva viagem sem volta rumo ao isolamento total até terminar seus dias em lugar incerto do interior da França, onde passou a viver vestido com o manto do gênio excêntrico/maluco.
Visionária e apocalíptica preocupação ecológica, simpatia pela cultura hippie, pacifismo inflamado pelo temor da guerra nuclear e a realidade da Guerra do Vietnã, militância política aflorada pelo Maio de 68, desapego dos confortos e bens materiais. Nesse caldeirão, Grothendieck colocou a ferver ainda o misticismo religioso. Passou a habitar um universo particular, físico e mental, do qual mandava nas últimas décadas de vida notícias inconstantes. Publicava na internet textos impenetráveis, com longas digressões percorrendo a lógica e o misticismo.
Deparei outra vez com Grothendieck entre as personalidades biografadas pelo escritor Benjamín Labatut em Quando Deixamos de Entender o Mundo, livro de 2019 que chegou há pouco no Brasil acompanhado por uma exitosa recepção internacional. Nascido na Holanda e criado no Chile, Labatut presta reverência a sujeitos brilhantes que cruzaram o ponto de não retorno movidos por obsessões que impactaram a ciência, a humanidade e, sobretudo, suas próprias vidas.
O fabricante suíço de tintas suíço Johann Jacob Diesbach e o alquimista alemão Johann Conrad Dippel não viveram para ver o que foi feito do seu pigmento sintético azul da Prússia, criado por acidente no começo do século 18. Responsável por uma revolução na arte europeia, esse pigmento serviu de base para o veneno mortal cianureto, presente tanto nos pesticidas usados nas lavouras quanto do Zyklon A, gás usado pelos nazistas para o extermínio em massa nos campos de concentração.
Por sua vez, o alemão Werner Karl Heisenberg testemunhou seus fundamentos da física quântica embasarem estudos para a construção da bomba atômica que Hitler não recebeu em tempo de usar na II Guerra, para seu alívio como anti-nazista discretamente convicto. Heisenberg tinha como rival o físico austríaco Erwin Schrödinger, e a disputa teórica que fritou os cérebros de ambos rende momentos saborosos do livro. Também somos apresentados à curiosa história do astrônomo alemão Karl Schwarzschild, que servindo como tenente na I Guerra enviou, das trincheiras do front russo, para espanto do amigo Albert Einstein, a primeira solução exata das equações da teoria da relatividade. E tem ainda o príncipe francês Louis de Broglie, que abriu mão dos luxos e salamaleques aristocráticos e enfurnou-se no laboratório para cimentar os pilares da mecânica quântica.
O que faz de Quando Deixamos de Entender o Mundo uma obra tão singular é sua narrativa ser inclassificável, avaliza Labatut. Combina a pesquisa histórica rigorosa com as liberdades da ficção para preencher lacunas. O autor se permite, por exemplo, criar um vínculo entre Grothendieck e o matemático japonês Shinichi Mochizuki, que em 2012 anunciou ter resolvido um dos maiores mistérios da teoria dos números – sua formulação, porém, é tão complexa que até agora ninguém foi capaz de comprovar se ele está certo ou errado. Para Labatut, eles são almas gêmeas em suas complexas aflições, entre elas o desgosto por não ter o reconhecimento que julgam lhes ser merecido. Labatut diz que a fantasia em torno de Mochizuki lhe abriu a porta para investigar a mente de Grothendieck.
Ao longo de cinco breves histórias, Labatut vai aumentando o tom da ficção sobre fatos reais. Cria biografias originais, fidedignas na essência, de homens iluminados que deixaram sua marca na ciência, cuja vaidade não visava a fama e a fortuna, mas o aplauso e a inveja de seus pares. São caminhos percorridos com descolamento da vida familiar e social, sofrimento físico, iluminação espiritual e epifanias delirantes das quais brotavam, como um flash, respostas para enigmas até então insolúveis. Pode não ter sido bem assim. Labatut mostra que faz todo o sentido ter sido. É culturalmente enriquecedor e bastante divertido embarcar com ele nessa aventura.