A taxonomia binominal zoo-botânica do biólogo sueco Carl von Linnaeus ( 1707-1778), ou simplesmente Lineu (foto da capa), muito contribuiu para conhecermos e entendermos o mundo em que vivemos. Contam que, depois de classificar e nomear inúmeros animais de pelo e de penas, chegou o dia de estudar moluscos, batráquios, répteis e outros “ bicharocos” aquáticos e terrestres. Criacionista e crente em Deus, ao abrir o tanque no qual seus auxiliares tinham colocado tais “bichos”, não suportando a visão do que via pela primeira vez, ajoelhou-se, olhou para o alto com as mãos postas e exclamou: “ Oh, Senhor, como são nojentas as tuas criaturas”.
Pois, hoje, queremos falar de um desses “nojentos” animais, chamado “caramujos-chinelo”, que apresentam características tão interessantes quanto estranhas, tanto sob o ponto de vista de como vivem quanto de como sexualmente se comportam. Os biólogos nos informam que estes moluscos vivem em águas lodosas e que têm a peculiar conduta de se agrupar em amontoados verticais. Os de menor tamanho, invariavelmente de sexo masculino, se colocam sobre os maiores, formando uma pilha de doze ou mais indivíduos. Os caramujos mais volumosos, que servem de apoio aos menores, são sempre fêmeas. E o relacionamento sexual desses estranhos moluscos não é nem banal, nem simples. Os machos, apesar de sua pequena massa corporal, possuem órgãos genitais suficientemente longos para atingir as fêmeas que são a plataforma do grupo. E se for necessário, os finos e desmesurados pênis deslizam como delgadas antenas contornando os outros machos até conseguir copular com as fêmeas.
Porém, a aventura sexual dessas criaturas não termina assim. Elas também mudam de sexo. As formas juvenis amadurecem como machos e, quando crescem, tornam-se fêmeas. Os caramujinhos que se instalam na zona intermediária do conglomerado são transexuais, machos que poderão se transformar em fêmeas.
Um macho mais velho permanecerá macho por mais tempo se ficar preso a uma delas. A escassez de fêmeas influencia certos machos a mudar de sexo e, uma vez que o indivíduo se torna fêmea, assim permanecerá.
Lineu, com os parcos recursos técnicos de sua época, estabeleceu os princípios da taxonomia em função da sexualidade binária – machos ou fêmeas – e batizou esta espécie de moluscos com o sugestivo nome de Crepidula fornicata .
Certamente, Lineu ignorava seus hábitos sexuais, já que examinava espécimes soltos que se encontravam nos tanques de seu laboratório. Crepida, em latim, quer dizer “chinelo” , que corresponde vagamente à sua forma e que deu o nome vulgar a esses caramujos. Mas, por que Lineu acrescentou a palavra fornicata ?
O conhecido biólogo Stephen Jay Gould ( 1941-2002), incansável combatente pelo evolucionismo nos EUA (país em que certas escolas de diversos Estados ainda ensinam o Creacionismo!!!) escreveu que, em sua adolescência, se admirava com a imaginação libidinosa de Lineu, mas que teve uma desilusão quando descobriu que fornix em latim significa “arco” (mesmo em nosso dicionário Houaiss, fornic é definido como “abóbada”). Então, Gould concluiu que Lineu tinha adicionado fornicata para indicar a forma suavemente arqueada da base desses moluscos. Este descobrimento deixou o biólogo americano um tanto decepcionado, mas, por outro lado, estimulou sua atração por esses estranhos animaizinhos, os quais investigou durante toda sua curta, porém prolífica vida de cientista.
Acontece – e Gould, quando jovem, não sabia – que os romanos construíam edifícios com partes subterrâneas em forma de abóbadas, arcos (fornic). Nessas escuras concavidades instalavam-se prostitutas e é a partir desses estilos arquitetônicos e de vida que os primeiros escritores cristãos, que abominavam a prostituição, passaram a adotar o termo fornicare como sinônimo de ato sexual clandestino e pecaminoso.
Ficou uma interrogação: Lineu teria percebido, com os toscos meios técnicos que possuía, a forma de vida sexual dos “caramujos-chinelos” ou simplesmente acrescentou a palavra fornicata à sua denominação científica, relacionando o aspecto físico deles com arcos arquitetônicos?
Ciência e Linguística
No presente caso do estudo dos caramujos-chinelo, a linguística forneceu uma base para um estudo das formas de vida e uma associação entre as curvas arquitetônicas, as anatômicas e o comportamento sexual desses animais. É interessante como a linguística empregada nas ciências naturais e humanas também pode ser de extremo valor quando se relacionam palavras de uso corrente com certos sentimentos e situações e mesmo interpretações históricas. Assim, a partir de raízes de palavras como ira, amor, inveja, luxúria, avareza e outras, podemos retroceder ao latim, ao grego, às antigas línguas eslavas e germânicas e mesmo ao sânscrito para reconstruir um complexo mundo passional e recuperar significados muitas vezes reprimidos pela cultura imperante.
Sobre este tema, Ivone Bordelois, linguista argentina que se formou com Noam Chomsky no MIT,em seu livro ETIMOLOGIA DE LAS PASIONES ( Libros del Zorzal, Buenos Aires, 2006), em magnífico texto de apresentação de seu livro, assim se expressa:
“A antiga avenida, povoada por sonolentos dicionários, desembocou em um tapete formidável onde se entrecruzam sombras e cores, onde vibram recordações e se abrigam em tons cinzentos os esquecimentos. A ira que se identifica com a paixão e a paixão que se batiza como sofrimento, o uivo da avareza e o estrabismo da inveja, o “estro” da inspiração e o estrogênio do sexo, o leite do amor, os lamentos da tristeza e a fugacidade da alegria, a fraternidade da esperança, eis aqui um bosque de metáforas que nos fazem retroceder à infância da linguagem, quando o corpo, as palavras e as emoções lindavam com os ossos, com o sangue, com os olhos e com a pele”.
Lindam também com a beleza, não?
Franklin Cunha é médico e membro da Academia Rio-Grandense de Letras.
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Foto da Capa: Wikipedia