No final de outubro deste ano de 2023 abro a caixa de correspondência e encontro um envelope com um livro e uma dedicatória que, além de me emocionar muito, me fez viajar no tempo – “Lelei, me sinto honrada por ter te conhecido, conhecido sua história e de Marlene. Vocês duas, suas vivências, dores e delícias, foram essenciais para este livro existir. Obrigada, protagonista! Abraço cheio de afeto, Sabryna Moreno”.
A emoção segue com o título instigante do livro que recebo: Vidas transbordantes: Histórias reais de pessoas com deficiência (Goiânia, GO – Edição da Autora, 2023). E continua – “Para todas as pessoas que, com seus corpos e mentes diversos, se permitem transbordar para serem protagonistas de suas histórias”. No Prólogo, mais emoção – “Viver na fronteira é pouco para as vidas transbordantes”.
Sabryna reuniu relatos de seis pessoas com deficiência que compartilham seu jeito de existir e se expressar. E diz mais – “Eu, uma mulher sem deficiência, me encontrei com elas no momento em que bati de frente com meu eu capacitista” / “A deficiência não é ‘apesar’, nem passaporte angelical. É uma das características que fazem uma vida se movimentar, se manifestar, se apresentar ao mundo. É urgente entender que o corpo e a mente de pessoas com deficiência não são lembretes de que as coisas poderiam ser piores na sua vida normativa”. / “Esse é o resultado da construção humana dentro de uma estrutura que segrega as existências plurais”.
E neste viés Sabryna escreveu um livro transbordante sobre tudo o que envolve o viver e a diversidade que nos constitui como sujeitos únicos.
“Daqui em diante, busco o trajeto que nos leve a entender que a existência é muito diversa para caber em um potinho fechado. Que ela transborde cada vez mais”.
O livro reúne seis histórias de pessoas com deficiência e abre com uma entrevista que ela fez comigo. Em seguida, vem o desabafo da baiana Amanda Ísis Soares, escritora, professora e pesquisadora em Literatura, que teve paralisia cerebral e “seu corpo foi reduzido a um lugar silencioso e preterido. Se o amor tem gosto doce, para Amanda restou a amarga posição de fardo”, mas ela “abraçou seu corpo e entendeu que não é preciso andar para alcançar o céu”. A terceira história é a da pernambucana Kilma Coutinho, que é surda e encontrou na arte a maneira de expressar seus sentimentos. Graduada em Letras-Libras, ela é professora, ama pintar e desenhar e quer seguir mostrando “quem é o surdo e que ele pode, sim, ser artista”.
A quarta história traz Ana Carolina, que é Carol Cardoso, jovem de 25 anos que nasceu em Belém do Pará, mas viveu a infância, a adolescência e o início da vida adulta em Macapá, capital do Amapá. Homossexual e autista, Carol confessa que entre os dois armários rodeados de preconceito para ela foi mais difícil sair do primeiro, o da homossexualidade. Aprender a se comunicar foi “um ato intenso e revolucionário”.
A quinta história é a de Fábio Souza, “tio Faso bonequeiro”, que hoje costura sonhos, mas que desejou a morte até os 35 anos. “Eu sempre tive aquele pensamento de que a pessoa com deficiência é coitada”, confessa. Nesta idade, descobriu o autismo e sua vida mudou. A solidão o ajudou a criar, virou artista e passou a se comunicar através dos personagens que inventava. “Criar sorrisos e afagar gentes”, este é o lema da oficina de sonhos reais de Fábio, que entendeu que a sua função no mundo é contribuir com a felicidade de outras pessoas.
A sexta e última história do livro é a de Kanhu Raka Kamayurá, que nasceu no Parque Indígena do Xingu, a maior reserva indígena brasileira, situado ao norte do estado do Mato Grosso. Kanhu teve distrofia muscular de cinturas, uma doença genética que enfraquece e degenera os músculos. Sua trajetória é intensa, marcada por sombras e luzes, que ela e a família enfrentaram para além das tradições.
O desejo que impulsionou a jovem jornalista
Sabryna Moreno nasceu em Rio Verde, Goiás. Formou-se em jornalismo pela Universidade Federal e foi morar em Goiânia com o objetivo de buscar um sentido para a sua trajetória profissional contando histórias de vida, “como as que tecem este livro”. É o que ela faz ao publicar as entrevistas que realizou para o Trabalho de Conclusão de Curso/TCC neste “livro-reportagem sobre vivências reais de pessoas com deficiência”. Em dezembro de 2021, recebi um e-mail da Sabryna contando do projeto e me convidando para uma entrevista. Respondi imediatamente que sim, entusiasmada e sensibilizada com a iniciativa de uma jovem universitária que queria contar histórias de vivências reais de pessoas com deficiência.
Marcamos uma conversa por videoconferência, eu em Porto Alegre, ela na capital goiana. O tempo era pandêmico e Sabryna não sabia da morte da Marlene, minha irmã. Ela nos descobriu através de uma entrevista publicada em 2014 no Sul21. Quando me procurou para a entrevista, no final de dezembro de 2021, falei do momento que vivia e do livro que eu tinha lançado no final de 2020, “E fomos ser gauche na vida” (pubblicato Editora). Ao me reencontrar hoje na escrita de Sabryna, dois anos depois da nossa conversa, só posso repetir o verso de Fernando Pessoa – “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.