A violência contra a mulher aumentou no ano de 2022 e, infelizmente, ao julgar pelas notícias estampadas nos jornais, ou pelo que lemos ou escutamos nas redes sociais diariamente, continua a crescer de forma alarmante.
Quando falamos de violência contra mulher, estamos tratando de todo ato lesivo que resulte em dano físico, psicológico, patrimonial, sexual que tenha por motivação principal o gênero, ou seja, pelo fato de serem mulheres.
A violência contra mulher pode ser praticada em ações individuais tais como o assédio, a violência doméstica, o estupro, o feminicídio e a violência obstétrica. Todavia, também pode ser praticada como ação coletiva como é o caso de organizações criminosas tais como a rede de trafico de mulheres para prostituição involuntária.
De acordo com pesquisa realizada nesse ano, pelo Data Folha, denominada “Visível e Invisível: A vitimização das mulheres no Brasil”, “cerca de 50 mil mulheres sofreram algum tipo de violência , a cada dia no ano passado”, conforme divulgado no site.
É tão grave e persistente a violência contra a mulher no Brasil, que a lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), inclusive teve sua redação alterada em abril deste ano, pela Lei 14.550/23, para permitir que as medidas protetivas de urgência sejam concedidas mais rapidamente, “a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas”, com a ressalva de que as medidas podem ser indeferidas caso a autoridade responsável pela concessão entenda que inexiste risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.
Um grande avanço na legislação, foi inclusão das normas que determinam que “as medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento da ação penal ou cível, da existência do inquérito policial ou do registro do boletim de ocorrência” e que “as medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.
Vale mencionar que algumas disposições da Lei Maria da Penha deveriam ser ensinadas nas escolas, inclusive nas particulares, pois a violência doméstica, ainda que em proporções distintas, ocorre em todas as classes sociais. É importante reforçar que seria uma forma de educar e conscientizar as crianças, independente de gênero, desde cedo. Muitas pessoas crescem em ambientes onde a violência é normalizada. Isso gera uma reprodução do ciclo violento que aprenderam dentro de seus modelos familiares.
Educação e conscientização são imprescindíveis para romper o ciclo de violência, pois possibilitam às pessoas informações sobre as formas apropriadas de resolver conflitos, sobre relacionamentos saudáveis, sobre as formas de violência contra as mulheres, o que também auxilia no combate a desigualdade de gênero.
São as disposições da Lei Maria da Penha a saber:
“Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.”
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Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
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O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
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Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados”
Seria ótimo se a realidade brasileira espelhasse a nossa legislação. Como se deixou claro no início desse artigo, a violência doméstica contra as mulheres continua com “força total”.
O que é a violência doméstica e familiar?
A violência doméstica familiar contra mulher, independentemente da orientação sexual, é aquela que decorre de qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause more, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (i) no âmbito da unidade doméstica, entendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive com aquelas esporadicamente agregadas; (ii) no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; (iii) em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Importante salientar que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos.
A violência doméstica e familiar contra a mulher admite várias formas, entre outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda a sua integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Como deve ser o atendimento pela autoridade policial
A autoridade policial que tomar conhecimento de uma situação de iminente violência ou de ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher deverá imediatamente, tomar as providências legais cabíveis.
A mulher, em situação de violência doméstica e familiar, deverá ter atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores – preferencialmente do sexo feminino.
A inquirição da mulher vítima de violência doméstica e familiar ou de testemunha de violência doméstica, quando se tratar de crime contra a mulher, obedecerá às seguintes diretrizes:
I – salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar;
II – garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência doméstica e familiar, familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas.
III – não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.
A inquirição, preferencialmente, será feita em recinto especialmente projetado para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida;
Quando for o caso, a autoridade judicial ou policial, determinará que a inquirição seja intermediada por profissional especializado em violência doméstica e familiar designado pela autoridade judiciária ou policial;
O depoimento será registrado em meio eletrônico ou magnético, devendo a degravação e a mídia integrar o inquérito
Outrossim, a autoridade policial, no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá, entre outras providências:
I – garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;
IV – se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V – informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis, inclusive os de assistência judiciária para o eventual ajuizamento perante o juízo competente da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável
Em qualquer caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, realizado o registro da ocorrência, a autoridade policial deverá adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;
II – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência;
IV – determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários;
V – ouvir o agressor e as testemunhas;
VI – ordenar a identificação do agressor e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes criminais, indicando a existência de mandado de prisão ou registro de outras ocorrências policiais contra ele;
VI/a – verificar se o agressor possui registro de porte ou posse de arma de fogo e, na hipótese de existência, juntar aos autos essa informação, bem como notificar a ocorrência à instituição responsável pela concessão do registro ou da emissão do porte;
VII – remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público.
Muito importante destacar que os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde serão admitidos como meios de prova.
Se houver a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:
I – pela autoridade judicial;
II – pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou
III – pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.
Se houver risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.
Medidas Protetivas de Urgência que obrigam o agressor
Ocorrendo violência doméstica e familiar contra a mulher, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente’;
II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III – proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e
VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.
Para que tais medidas sejam efetivas, o juiz poderá inclusive requisitar o auxílio da força policial.
Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida
O juiz, sem prejuízo de outras medidas poderá:
I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
II – determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;
III – determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV – determinar a separação de corpos;
V – determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para essa instituição, independentemente da existência de vaga
VI – conceder à ofendida auxílio-aluguel, com valor fixado em função de sua situação de vulnerabilidade social e econômica, por período não superior a 6 (seis) meses
Com relação a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:
I – restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II – proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III – suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
IV – prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência
Quem descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria de Penha estará sujeito a pena de detenção de 3 (três) meses a 2 (dois) anos, sem prejuízo da aplicação de outras sanções cabíveis.
Mulher trans
As mulheres trans são alvos de múltiplas agressões e preconceito e ainda têm de encarar as violências dentro do ambiente de trabalho e nos serviços de saúde. Todavia elas hoje também têm direito a proteção legal estipulada na Lei Maria da Penha. Em 2022, a Sexta Turma do STJ estabeleceu que nos casos de violência doméstica e familiar contra mulheres transgêneros, independentemente do seu sexo biológico, a Lei Maria da Penha também será aplicada.
Central de atendimento a mulher
O governo federal disponibiliza o “Ligue 180”, para denunciar e buscar ajuda para as vítimas de violência doméstica contra a mulher. Esse serviço, disponível em todo o território nacional, presta uma escuta e acolhida qualificada, efetua o registro e encaminha as denúncias para os órgãos competentes. O Ligue 180 pode ser utilizado pela própria mulher vítima da violência ou por testemunhas de tais atos.
Como já mencionamos anteriormente, para diminuir a violência domestica faz-se necessária uma maior conscientização da sociedade em geral, das próprias vítimas que muitas vezes desconhecem seus direitos, e mais eficiência das autoridades públicas responsáveis pela aplicação de justiça. De nada adianta termos uma lei com dispositivos claros e bem redigidos, se os aplicadores da lei não a usam com a celeridade necessária, e os agressores continuam soltos e incólumes.
Se vocês perceberem que alguém é vítima de violência doméstica e familiar, por favor, ajudem. Falem com essa pessoa sobre os direitos que a lei lhe confere. Não raro a pessoa está tão abalada e fragilizada, que não sabe o que fazer. Acaba ficando paralisada, até que algo ainda pior aconteça. Sei que o assunto abordado no artigo de hoje foi pesado, desagradável mesmo, mas é necessário que a sociedade inteira se mobilize contra esse tipo de violência, que como se mencionou no início do artigo, ocorre de forma intensa no Brasil.
Foto da Capa: Fernando Frazão/Agência Brasil