Sabe aqueles momentos em que nos faltam as palavras? Aqueles instantes em que a descrença na humanidade invade, corrói e destrói ao nos silenciar diante da barbárie? Parecem episódios rápidos de anestesia, em que você se sente dormente, como se estivesse ausente do corpo, longe de tudo e, especialmente, da realidade. Provavelmente um mecanismo de defesa, uma estratégia mental e/ou cognitiva pela qual se busca manter a sanidade; talvez apenas uma fuga para negar a própria responsabilidade diante do abismo no qual estamos caindo. Pode ser tanta coisa e, ao mesmo tempo, nada. Mas é assim que tenho me sentido nos últimos tempos, e acredito que tal sentimento esteja se generalizando entre a população. Há, na atualidade, uma espécie de letargia que insiste em nos invadir, provocando certo entorpecimento, preguiça mental, apatia, uma desilusão que confunde. E é esse estado de torpor que desencadeia sonolência, desânimo e certa desesperança, levando-nos a concluir que, definitivamente, o Brasil não é um país para os fracos.
Sabe aqueles momentos em que a dor que te consome parece saltar boca afora? Quando a tristeza se torna tão intensa que termos como indignação, aversão ou repulsa já não traduzem nem expressam o que sentimos? Esse tipo de desconforto me invade sempre que o assunto é violência sexual contra crianças e adolescentes, uma das mais cruéis modalidades de violência, que se enraíza e se consolida em nossa cultura patriarcal, machista, misógina e perversa, na qual os corpos e as sexualidades são tidos como objetos de consumo e posses daqueles que detêm o poder.
A forma como lidamos, toleramos e até “naturalizamos” as várias formas de violência me provoca um desassossego tão grande que me esgota de tudo, provoca um vazio imenso e me leva ao desalento. Talvez essa seja a palavra que me faltava para descrever o que sinto no momento. Sim, confesso que tenho vivenciado certo desalento, o que significa dizer que, em alguns momentos, tenho me visto derrotado, desconfortável, frustrado e abatido. Experimento, neste instante, um misto de emoções asfixiantes, sem saber mais se choro ou grito; se esbravejo ou se, simplesmente, me acomodo e me deixo acuar. E isso se chama impotência. Um tipo de desânimo e descrença que te paralisa. O que, logicamente, não combina com minha personalidade nem com minha forma de enfrentar desafios.
Não posso negar que fiquei em choque ao ouvir uma “celebridade religiosa” discursar para uma plateia alienada de sua capacidade crítica em favor do perdão à violência sexual contra crianças e adolescentes. “Perdoa tudo o que você tiver em seu coração hoje, neste lugar. Perdoa. Se teve abuso sexual, perdoa. Se foi da família, perdoa”, proclamou em alto e bom tom Baby Consuelo, hoje Baby do Brasil, no último dia 10 de março, durante um show/culto na D-Edge, uma das casas de música eletrônica mais famosas e tradicionais de São Paulo, conforme divulgado pela imprensa nacional. Então, me pergunto: como assim? Do que Baby está realmente falando?Violência contra Crianças
É preciso entender que o discurso ou pregação religiosa da ex-vocalista da banda Novos Baianos não foi apenas infeliz ou irresponsável, como alegado por alguns. Seu ato foi criminoso! Sua postura, além de intolerável e inoportuna, é de uma indecência que beira o delírio ou a perversão. Cabe destacar que essa não foi a primeira vez que ela se apressou em suas colocações equivocadas. A ex-roqueira da década de 1970, hoje convertida ao cristianismo, tem frequentemente utilizado os palcos como púlpito para amedrontar os desavisados e a população em geral, alegando a proximidade de um possível apocalipse, tão lunático quanto seu comportamento. Creio que seu real objetivo consiste unicamente em angariar adeptos para a igreja pentecostal da qual é fundadora e pastora.
Autodeclarada “popstora”, Baby do Brasil afirma que sua conversão se deu após vivenciar uma experiência divina, na qual entrou na barriga de Deus, voando, momento em que ouviu d’Ele que estava sendo gerada novamente. Quem conhece sua trajetória como cantora certamente já se acostumou com sua postura e comportamento excêntrico, irreverente e extravagante, fugindo aos padrões comuns. Mas assim já é demais. Aliás, cabe lembrar que excentricidade também denota desvio ou distanciamento do centro. Completaria dizendo que, nesse caso, o que se vê é um sério distanciamento do bom senso, algo que talvez nunca lhe tenha sido peculiar.
Em que mundo realmente vive a Baby Consuelo atual? No mundo da fantasia, do faz-de-conta, dos alucinógenos ou no da irresponsabilidade? Até porque é devido a esse tipo de discurso que o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes tem se perpetuado e alastrado no país e no mundo. É graças a essas crenças alienantes que casos como o de uma menina de seis anos, do Espírito Santo, vítima de violência doméstica e abuso sexual, terminaram em morte cerebral. O caso foi noticiado em maio de 2021, indicando o padrasto como abusador e a mãe como pessoa omissa. É para esse tipo de crime que Baby Consuelo nos pede para perdoar?
Em março deste ano, uma menina também de seis anos, de Minas Gerais, usou cola Super Bonder nas partes íntimas para não ser violentada sexualmente pelo padrasto, que também cometia agressões contra mais dois enteados: uma criança de quatro anos e uma adolescente de quinze. Em depoimento, sua mãe afirmou que tinha conhecimento dos abusos sofridos pelos filhos e justificou ter sido também vítima de violência sexual na infância, fato que a levou a considerar os atos do companheiro como “práticas naturais”. E a pastora se utiliza do poder da religião, não para exigir justiça, mas para pregar a subjugação das vítimas aos agressores?
Em fevereiro deste ano, na cidade de Tabira, em Pernambuco, o menino Arthur, de dois anos, deu entrada num hospital com diversos ferimentos. A criança não resistiu aos traumas resultantes da violência física e sexual sofrida, promovida pelos cuidadores contratados por sua mãe trabalhadora. O agressor foi linchado pela população local ao ser escoltado pela polícia e morreu no hospital. Sua companheira segue detida em presídio não divulgado. No mesmo mês, foi registrado o desaparecimento de Vitória Regina, adolescente de dezessete anos. Seu corpo foi encontrado no início do mês seguinte, em Gajamar, cidade da Grande São Paulo, com vários ferimentos e perfurações a facadas. Os laudos iniciais indicaram que a vítima foi dopada, torturada e abusada sexualmente antes de ser assassinada. Estamos falando aqui de crimes sexuais, com penalidades previstas em lei. E são esses crimes que a Baby do Brasil pede para que sejam esquecidos e perdoados pelas vítimas, familiares e sociedade? Em nome de quem? De Deus?
Estes são apenas os casos mais recentes dos quais se tem tido notícia. Porém, quem já esqueceu de Isabella Nardoni, menina de cinco anos que foi atirada pela janela do sexto andar do apartamento onde o pai residia com a segunda esposa? O caso que aconteceu em São Paulo, em 2008, gerou grande repercussão midiática e revolta na sociedade brasileira. Foi feita justiça. Não divina, mas a justiça dos homens.
Entre casos de grande comoção popular, destaca-se ainda o assassinato de Bernardo Boldrini, de onze anos, promovido pelo pai e pela madrasta, que contaram com a ajuda de uma amiga do casal. O crime ocorreu em Três Passos, no Rio Grande do Sul. Vale lembrar que, queixando-se de abandono familiar, o garoto chegou a procurar o Judiciário meses antes de sua morte, em abril de 2014. Alguém consegue não cobrar justiça por isso?
Ruan Maycon, de nove anos, foi assassinado com onze facadas em 2019. A barbárie foi cometida pela própria mãe da vítima e sua companheira. O menino teve ainda o pênis decepado e o corpo esquartejado antes de ser acondicionado em uma mala.
Em junho de 2020, Otávio Miguel, de cinco anos, caiu do oitavo andar do edifício Pier Mauricio de Nassau, em Recife. A queda de uma altura de mais de 35 metros se deu enquanto a criança estava sob os cuidados da patroa de sua mãe, que havia descido ao pátio para passear com o cachorro dos empregadores, na época, prefeito e primeira-dama do município de Tamandaré, no estado de Pernambuco.
No ano seguinte, em 2021, outro caso chamou a atenção da população ao ganhar as mídias. Henry Borel, de quatro anos, faleceu a caminho de um hospital devido às lesões internas e lacerações identificadas em seu corpo. O crime, ocorrido na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, foi cometido pelo pai, vereador da cidade, com a ação da madrasta.
Estamos falando de filicídio, crime cometido por pais e/ou mães, biológicos ou adotivos, contra o filho ou filha. Na legislação brasileira, tal crime é tipificado como homicídio. Então, fala-se aqui sobre pessoas que cometeram crimes, intencionais ou não, pelos quais devem ser responsabilizadas. E isso se chama justiça. Alguém conseguiria esquecer ou perdoar, caso as vítimas fossem seus filhos ou suas filhas, sobrinhos ou sobrinhas, netos ou netas?
Essa pequena cronologia parece coincidir exatamente com a conversão da atual pastora-gospel, que apenas dois anos após se converter ao cristianismo fundou a própria igreja, que prega a “Teologia do Domínio”. Bom saber que, por tal doutrina religiosa, prega-se que a sociedade é formada e constituída por “montes” que devem ser governados pelo conservadorismo cristão, incluindo a educação e a ciência, a economia e negócios, além do governo, da cultura e da própria igreja. Tem coisa mais alucinada do que isso? É a volta à Idade Média ou a consolidação de um mundo distópico que se apresenta como grave risco?
Na minha opinião, a ex-psicodélica cantora parece delirar atualmente em outros “pensamentos mágicos”, alucinando contra a lei. Todo tipo de maus-tratos e/ou violências contra a pessoa deve ser denunciado, julgado e condenado, e não esquecido ou perdoado por amor ao divino. Especialmente quando infringido contra crianças e adolescentes, não se pode fingir indiferença e perdoar os agressores, sejam esses homens ou mulheres; heterossexuais, bissexuais, homossexuais; burgueses, classe média ou pobres; pais, mães, madrastas ou padrastos; jovens, adultos ou idosos; brancos, negros ou de qualquer outra etnia/raça; padres, pastores, guias espirituais, pais ou mães de santos; parentes ou aderentes; conhecidos ou desconhecidos.
Perdoar um agressor, especialmente em casos de abuso sexual intrafamiliar, que envolve o incesto, é uma escolha pessoal e se estabelece após difícil processo de ressignificação. Mas esse “perdoar” pregado por Baby do Brasil parece mais dirigido à perpetuação da impunidade. Figura como um autorizo para que se jogue a violência doméstica e sexual para baixo do tapete. Negar ou esconder um fato ou infração legal não significa a sua não existência. Pedir para que se esqueça ou releve um crime do qual se foi vítima é incentivar e legitimar a ação dos agressores e criminosos. Assim, penso que a pastora precisa urgentemente repensar suas responsabilidades enquanto influenciadora religiosa antes de propagar concepções terraplanistas. Afinal, não se deve ou pode utilizar-se de uma divindade para naturalizar crimes hediondos.
Toda religião é alienante, sabe-se disso – ainda mais quando desvirtuada de sua ideologia e essência, não cumprindo com o seu papel de alentar os fiéis e seguidores em seus sofrimentos. É preciso considerar que esse tipo de pregação religiosa propagada por Baby do Brasil e mais uma legião de falsos profetas tem se estabelecido, em verdade, como grande risco a toda sociedade. A morte e o sofrimento das centenas de crianças e adolescentes vitimadas diariamente no Brasil e mundo afora têm que nos chegar como um soco no estômago, um embrulho que causa náuseas e vômitos, impossibilitando a respiração. Esse tipo de violência, como todas as demais, deve nos provocar azedume na boca, devido à sua perversidade, crueldade, indecência, imoralidade e sordidez contra a vida humana.
Não é a primeira vez que celebridades religiosas – um novo celeiro e mercado para os que penam o ostracismo midiático – testemunham e pregam contra as vítimas e o direito a uma infância saudável. E, logicamente, não será a última. Daí a necessidade de nos mantermos atentos, resistentes e perseverantes contra o mal. Especialmente, é preciso ser e se manter crítico às “palavras e práticas de sujeição” ditadas por essas pessoas que se dizem representantes da fé. Caso contrário, nos tornaremos tão medíocres e hipócritas quanto os que pregam a violência em nome de suas divindades.
A violência sexual contra crianças e adolescentes deve, acima de tudo, nos provocar angústias e dores intensas e, especialmente, nos encher de culpa, reconhecida também como nossa. Afinal, ao me tornar cúmplice por omissão ou ausência de ação, torno-me tão criminoso e culpado quanto quem pratica o ato. Não te parece óbvio? Ou não?
Epitacio Nunes de Souza Neto é psicólogo, psicoterapeuta e professor universitário. Possui doutorado em Psicologia Cognitiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Doutorado em Psicologia pela Universidad del Salvador (USAL) de Buenos Aires, Argentina. Possui também mestrado em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
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