Naquela manhã, o Comandante acordou cedo; como em todos os dias, só que mais focado em suas missões. Aquele era um dia especial; como todos os anos àquela data. Cuidou para não fazer barulho algum, para não acordar a esposa que dormia tranquila, há pouco a ele abraçada. Demorou-se mais tempo que o costumeiro no banheiro, em seus preparativos matinais, e depois no quarto de vestir, onde sua roupa de trabalho se encontrava disposta no cabideiro, impecavelmente passada. Vestiu-se. Mirou-se detidamente no espelho. Sim, estava muito bem, a despeito das circunstâncias do trabalho. Ao café, pois.
Deixando cair o guardanapo sobre a mesa, levantou-se, aceitou o quepe da mão do Ajudante de ordens e, dando o comando “Vamos!”, partiram para a rotineira inspeção de todas as manhãs, a primeira parte de suas atividades diárias. Tudo devia estar como planejado, não admitia falha alguma que fosse; era o mais conceituado e condecorado comandante de setor do planejamento geral em andamento, segundo a cúpula militar, exemplo e orgulho da família — a esposa e um casal de filhos pré-adolescentes.
Duas horas depois, já em seu gabinete de trabalho, com o Ajudante de ordens, o Administrador e a Secretária, dispunha, cobrava e aprovava ordens e providências. Tudo passava por suas mãos, nada deveria ser feito sem o seu conhecimento e concordância, e principalmente naquele dia:
— Major — iniciou, em tom incisivo e inquestionável, como era de seu feitio — o pessoal que trabalha no campo deve trocar a atividade e iniciar a faina de limpeza do salão dentro de uma hora. E que seja como nunca foi, melhor que no ano passado e difícil de superar no ano que vem. Supervisione pessoalmente. — Sr. Administrador: diligencie para que o pessoal da cozinha, que vêm da capital, entre pelo acesso especial, particular, e aloje-os; não os quero misturando-se com o pessoal permanente e que tenham todos os recursos para o bom desempenho de suas atribuições; utensílios e mantimentos sempre à mão para que o menu seja soberbo, tal qual elaborei ontem. Aqui está, com a harmonização dos vinhos; providencie. A mesa deve ser disposta de acordo com o Mordomo-chefe, que vem também. — Dona Marta: serviço completo para entrada, 2 pratos, sobremesa, café e licor. Toalha de linho branco, louça Limoges, faqueiro e baixelas de prata Christoffle e cristais Baccarat; veja com minha senhora e passe também para o major os discos para o fundo musical e canções típicas. O fervor desta noite deve atingir no mínimo a perfeição; é uma questão de fé.
— Sim, senhor Comandante — foi a resposta uníssona tão logo o coronel acabou de ordenar e voltou a sentar-se.
— Um último detalhe — tornou o Comandante: — traje civil longo para as mulheres, festivo para as crianças, e gala militar para os homens. Horário: 20 horas, nem mais, nem menos. Dispensados!
Eram 16 horas quando o Ajudante de Ordens, após as três batidas protocolares, adentrou o gabinete do Comandante que, sentado por trás de sua ampla e majestosa mesa de trabalho, ultimava o expediente com a Secretária à sua frente e a esposa, em pé, ao seu lado; como ele não deixava de alardear, não permitiria que o trabalho o fizesse distanciar-se da atenção, carinho e amor que a família era merecedora, e por extensão, o ser humano, sob sua liderança.
— Um momento, meu amor, já iremos nos preparar; só um instante — Pois não, Major.
— Meu Comandante, são 16 horas. Os serviços de logística e de copeiragem correm dentro do planejado. Permissão para acender o forno — falou o Ajudante, se empertigando todo.
— Major, major… Hoje não. Me parece que o senhor não está levando em conta nem o significado da data, nem o cerimonial… O coquetel será servido na varanda; quero uma noite estrelada, céu limpo, nada de fumaça nem cheiros que não sejam os das lavandas do jardim.
— Mas…
— Nem mais, nem por quê — cortou o Comandante e continuou — hoje não! Administre a rotina de outra maneira; seja mais criativo ou terá que prestar contas a mim e ao Nosso Senhor, nesta ordem. — encerrou.
— Meu esposo não é a sensibilidade em pessoa? Que preciosidade! — comentou a esposa, com ar embevecido, dirigindo-se à Secretária, que assentiu discretamente com a cabeça.
O Major, visivelmente contrafeito, bateu continência, pediu licença e voltou-se, saindo em passos marciais. A porta fechou-se quando o Comandante olhava para a esposa, para a Secretária, e aferia, por suas feições, o efeito da sua afirmação de humanidade.
Às 20 horas em ponto, conforme estabelecido, já lá todos se encontravam. As mulheres de longo e maquiagem caprichada, as crianças de roupas festivas e os militares, impecáveis, de gala. O anfitrião e a esposa circulavam entre todos, sorridentes, felizes; apresentações, conversas alternadas nos grupos, serviço impecável, o coquetel prenunciava o sucesso tão almejado para aquela noite.
Às 21 horas, o chamado para o evento principal, no salão nobre da residência. Tudo perfeito, conforme comandado. Admiração e pontas de inveja estampadas nos rostos dos convivas. Que distinção! Que civilidade! Indicados os lugares pelo Mordomo-chefe, sentaram-se todos; garçons serviram água, champanhe e postaram-se atrás dos comensais; todos agora à espera da palavra do Comandante.
O Coronel levantou-se, solene, e todos redobraram a atenção à sua fala:
— Meus amigos, senhoras e jovens: estamos reunidos nesta noite de confraternização, orando humildemente por nós mesmos, nossas famílias e por nossa fé. Ergamo-nos, pois, para um brinde em louvor ao que nos vai n’alma e no coração nestes tempos difíceis, porém necessários, para o futuro da civilização.
Todos em pé, repetiram o Comandante: ergueram a taça de champanhe com a mão esquerda e fizeram coro: — Que Deus, através de Seu filho, nos abençoe e proteja — e erguendo o braço direito, concluíram com entusiasmo: — e ao nosso Fuehrer. Heil Hitler!
Sentaram-se e teve início a ceia de Natal.
Mais adiante, em ambiente festivo e familiar, a vitrola iniciara, com Stille Nacht, acompanhada em coro pelos convivas, e agora despejava canções típicas, às vezes — para muitos risos — desafinadas por algum excesso etílico.
Lá fora, no alojamento 25, Isaac, numerado R739 — entre tantos outros —, um dos que trabalhara na faxina da residência naquele dia, reconhecia os sons que atravessavam a noite silenciosa. Olhava pela pequena janela embaçada e via a lua — iluminando o campo, que pela primeira vez no ano não exalara dos fornos o cheiro de carne queimada. E recordava, o tanto quanto lhe permitia a mente enfraquecida, as tradições, os jantares e as canções em família, em seu lar. Nos tempos em que tivera um lar e uma família.
FIM
Ao que pensei: “ Conto Natalino ?!” “Meio forçado, pois não?!”
Pois necessário. As manifestações antissemitas a eclodir pelo mundo que o digam.
Lembrar é preciso. Que não se lhes deixem passar indeléveis. Nem impunes.
FELIZ NATAL aos leitores.
Jacob B. Goldemberg é arquiteto e professor. Já publicou os seguintes livros: Arquitetura: Espaço-Vida (1978), Arquitetura, Escritos (1998), O Essencial do Livro dos Livros – Contocrônicas, umas tantas (Ebook – Amazon) e Sobre Judeus, Hebreus e um certo Jesus (2024).
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