Vivemos um tempo em que se por um lado a informação cabe na palma de nossas mãos, por outro somos ludibriados por toda sorte de golpes, alguns utilizando até mesmo inteligência artificial. Estes atos que caracterizam o famoso crime do artigo 171 do Código Penal, ou seja, o estelionato, vêm sendo praticados até mesmo nas relações afetivas. A internet, as diversas redes sociais, os sites de relacionamentos têm contribuído para o aumento de casos de estelionato afetivo. É impressionante o número de casos que escutamos de clientes, amigos, ou até mesmo da leitura das redes sociais, de pessoas que caíram nessas arapucas.
De acordo com o Código Penal, a ação descrita para crime do estelionato é obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. Da mesma forma ocorre no estelionato afetivo, sendo que a vítima é induzida a erro mediante artifício, ardil, que a faça acreditar que está vivendo uma “história de amor”, ou de grande solidariedade humana, enquanto na realidade está sendo seduzida e conquistada com o objetivo de ser lograda, usada para o proveito econômico do golpista, seja homem ou mulher. Muitas vezes ninguém sequer descobre quem era a pessoa utilizando a foto de um terceiro no aplicativo ou na rede social, por exemplo.
A este passo, saliento uma condenação, que ocorreu em 2023, na cidade de Belo Horizonte, em que um “estelionatário do amor” foi condenado a 10 anos e três meses de prisão, por ter abusado de diversas mulheres para obter vantagens patrimoniais e extorquir dinheiro delas. Para tanto, até mesmo usando um nome falso, ele se aproximou das mulheres por meio de aplicativos, ganhou a confiança delas, e as manipulou para que lhe emprestassem dinheiro, fizessem transferências bancárias para ele, e deixassem ele utilizar seus cartões de crédito. Teve uma que até mesmo contratou um financiamento para a compra de um automóvel para ele, e outras que foram vítimas de extorsão.
Olhando de fora, parece incrível como algumas pessoas conseguem fazer isso, mas eles escolhem as vítimas a dedo, analisam suas fragilidades, carências, e apresentam o personagem encantador que pode ser o grande amor tão esperado e que precisa do socorro das suas presas, que caem nesse nessa fraude amorosa sem qualquer resistência. É impressionante como as pessoas gostam, querem, precisam acreditar nessas histórias de amor, se sentirem amadas, ainda que seja por alguém que obviamente não é a pessoa certa. Promessas amorosas têm um apelo imenso, quase irresistível, dependendo da carência do outro ou da outra, e o mundo está cheio de gente ruim, querendo tirar proveito.
Tive uma amiga que nos anos 60 e 70 morou muitos anos na Europa, e que precisava entrar e sair da França periodicamente para renovar seus vistos de permanência. Na época não era tudo informatizado como é agora, e quando perguntavam para ela por qual razão ela estava adentrando no país, ela dizia que era para encontrar o namorado, o noivo, um pretendente, e que com esse motivo romântico na ponta da língua, ela nunca era barrada. Segundo a minha amiga todo mundo gosta de ajudar uma história de amor. Se ela dissesse a verdade, contasse que estava trabalhando sem o visto de trabalho, seria barrada e deportada.
Em alguns casos, a pessoa iludida, ou querendo se iludir que é amada, acaba casando, morando junto, vendendo seus bens, dando acesso as suas contas bancárias ao meliante, e o que é pior, tendo filhos com o fraudador ou fraudadora que busca mesmo é limpar as suas contas e reservas, e mais cedo ou mais tarde consegue.
Importante destacar que que esse tipo de estelionato acontece tanto nas relações heterosexuais quanto homossexuais, e que não escolhe classe social, e não está impedido pelo alto nível cultural da vítima. As pessoas quando se apaixonam ficam muito fragilizadas e cegas de amor. Tem sempre alguém para acreditar em um sonho. E o famoso “golpe do baú”, que nada mais é do que um estelionato afetivo, em que alguém finge amar alguém, a ilude, para se apropriar de seus bens, é algo tão antigo quanto a história da civilização.
Assim, como no estelionato clássico do direito penal, o estelionato afetivo permite também a reparação dos danos, que são verificados caso a caso, e até mesmo a indenização pelos danos morais. O difícil em muitos casos, quando as relações são prolongadas é provar que houve uma fraude afetiva, pois muitas vezes as pessoas se apaixonam de verdade, e o amor acaba. Isso não é estelionato afetivo.
Nossos tribunais têm se debruçado a respeito e a jurisprudência brasileira vem desenhando, ainda que timidamente, contornos do que pode caracterizar ou provar o estelionato afetivo.
Oportuno transcrever alguns trechos de julgamentos reproduzidos no site jusbrasil.com.br.
Veja trecho desse julgamento realizado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
“O “estelionato afetivo” se configura na percepção do benefício em proveito próprio, mediante artifício ou ardil de cunho afetivo, de forma a induzir ou manter a vítima em erro ou engano (análogo ao art… ESTELIONATO AFETIVO. AUSÊNCIA DE ARDIL NA CONDUTA DO AGENTE. AUSÊNCIA DE ERRO QUANTO ÀS INTENÇÕES DO AGENTE. CONDUTA ILÍCITA NÃO CONFIGURADA. SENTENÇA MANTIDA.1… dinâmica do relacionamento sentimental é explícita a relação de intercâmbio entre a concessão de carinho e o financiamento de caprichos, faltam à situação o ardil e o engano que a configure como “estelionato”.
Muito interessante esse julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
“APELAÇÃO CÍVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ESTELIONATO SENTIMENTAL. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. INCONFORMISMO DO RÉU. 1. Restou demonstrado nos autos que a autora efetivamente foi vítima de estelionato sentimental, tendo o réu obtido a expressiva quantia de R$ 50.000,00 com promessas de investimentos e compra de imóvel. 2. Em que pese o réu alegar que a irresignação da autora seria em razão do fim do relacionamento, verifica-se através do Laudo de Exame em Material Audiovisual emitido pelo ICCE que o réu reconhece que recebeu os dois valores indicados na inicial como dano material, sendo que o primeiro valor estaria aplicado e o segundo estaria na sua conta do Itaú. 3. Danos morais configurados, em razão da insegurança e do abalo psicológico sofrido pela Autora ao se descobrir enganada financeira e afetivamente pelo réu. O valor da indenização, fixada em R$ 20.000,00, atende aos critérios da razoabilidade e proporcionalidade.”
Um aspecto muito difícil em alguns casos de estelionato afetivo é a obtenção de provas, pois o autor ou autora de tal crime sempre vai alegar que a outra parte não foi iludida, que havia uma relação afetiva, que a suposta vítima era capaz, inteligente, etc., o que faz com que muita gente, até mesmo por vergonha deixe assim mesmo, e não mova uma ação penal e outra indenizatória. Entendo esse lado também, a justiça brasileira é muito lenta, para ser elogioso, e cara para a maioria das pessoas que não podem pagar um advogado. Mesmo assim, vale tentar, e em vários casos indenizações são recebidas, as perdas e danos são mitigadas.
Como já falei em publicações recentes sobre a Violência patrimonial contra as mulheres e sobre Quando a separação vira briga, existem várias medidas jurídicas que podem ser tomadas em algumas situações, dependendo do caso concreto. Sugiro dar uma olhada nessas publicações também.
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Foto da Capa: Freepik